AGENDA CULTURAL

29.3.14

O primeiro ninho ninguém esquece

Hélio Consolaro*

Capa do livro
Quem me conhece, sabe que minha linguagem é cheia de substantivos e verbos, com poucos adjetivos, por isso tenho dificuldades de me relacionar no mundo político que adora rapapés. Gosto de mostrar também o outro lado.

Então, Maristela Veloso Campos Bernardo (marisvcb@uol.com.br), autora do livro A mulher olhando a menina – memórias, prepare o seu coração para as coisas que vou escrever sobre o seu livro, parodiando Geraldo Vandré.

Cacilda Amaral Melo, filha de Araçatuba, depois de encerrar sua carreira de professora universitária, também resolveu escrever suas memórias: “Relatos à procura do tempo”, publicado em 2008. Trajetória e iniciativa parecidas com as da Maristela: ambas se mudaram para São Paulo ainda menina, por lá fizeram a vida, mas a saudade da infância bateu forte e resolveram fazer uma catarse.

Como canta Ivan Lins: “Preciso desse menino, que eu carrego aqui dentro / Sem ele eu perco todo encantamento por ter crescido”.

As personagens Bentinho, em Dom Casmurro, de Machado de Assis; e Paulo Honório, em São Bernardo, de Graciliano Ramos também se propuseram a escrever um livro como forma de desvendar e esclarecer o passado.

Assim, as pessoas que exerceram atividade intelectual em suas vidas, ao chegarem a certa idade, têm o mesmo ímpeto, escrever autobiografias. Algumas, para deixar a seus descendentes, além das fotos, um relato; outras têm preocupações mais literárias, contam suas histórias com certo requinte. A mulher olhando a menina – memórias, editora Scortecci, São Paulo, foi bem relatado, num bom português.

Nunca me canso de dizer que a beleza de um livro não está em seu conteúdo. Ele se torna interessante se for bem escrito, porque houve um trabalho com a forma, seu autor soube bordar as palavras, criando imagens interessantes. A narrativa bem trabalhada prende o leitor.

Não me refiro a escrever difícil, como faziam os escritores parnasianos, nem ao experimentalismo literário. Manuel Bandeira e Mário Quintana sempre escreveram de modo simples, mas com uma riqueza poética de encantar as pessoas.

Não foi a pretensão de Maristela, ela quis apenas externar suas experiências e escolheu o texto como suporte, e o fez numa linguagem gostosa, leve, mas não chegou a ser literatura no sentido estrito.

Maristela Veloso Campos Bernardo relata em seu livro a sua vida passada em Major Prado, quando a vila era maior que Santo Antônio do Arancanguá. A escola mista, suas vindas para Araçatuba, sua vida como interna do Colégio N.S. Aparecida, a sua mudança definitiva para Araçatuba.

Perdeu o pai aos 11 anos de idade. Ruy Campos era fazendeiro, dono de grande armazém em Major Prado, foi vereador, casado com Albertina, a Filhinha. Apesar da pouca convivência permitida, ele marcou muito Maristela.

Se você, caro leitor, viveu a infância por esses grotões e quiser reviver velhos tempos, ou conhecer um pouco mais a história dessa região, recomendo a leitura de A mulher olhando a menina – Memórias, 170 páginas, R$ 30,00. Não está à venda nas livrarias, foi lançado em 10/12/2010. Brevemente, a autora estará em Major Prado, depois Araçatuba, para autografar seu livro, conversar com amigos e escritores da região. Enfim, revisitando o seu primeiro ninho.    

*Hélio Consolaro é professor, escritor, jornalista e membro da Academia Araçatubense de Letras e da UBE. Atualmente é secretário da Cultura de Araçatuba. 

ORELHA DO LIVRO - À ESQUERDA


As mãos de meu pai pendiam de seus longos braços quando ele caminhava, e suas veias ficavam saltadas formando um desenho azul tal como um rio e seus afluentes. Elas pegavam no laço, enlaçavam os cavalos, novilhos, bois ou touros na hora da marcação com os ferros em brasa para cunhar, nos pelos dos animais, um RC de Ruy Campos.
Quando algum peão não se aligeirava, ele estava a ensinar o ponto certo onde segurar o laço, o modo de lançá-lo sobre o animal no golpe certeiro para derrubá-lo. Fazia isso de maneira silenciosa, com pouca fala, com o olhar atento.
As mãos, com golpe certeiro no uso do perfurante de metal, comandavam o furo nos sacos de estopa para examinar seus grãos de cereais; elas se prensavam e, em movimentos circulares, separavam as palhas dos grãos de arroz; em conchas, amaciavam o fumo para o cigarro e, com os movimentos dos dedos no canivete afiado, refinavam as palhas que eu escolhia a seu pedido no paiol.
Entre tantas selecionava as mais macias de dentro das espigas de milho. As mãos dirigiam o jipe, as mãos erguiam o chapéu da cabeça em cumprimento aos passantes da estrada que iam e vinham a pé ou a cavalo. Elas se espalmavam sobre seus olhos para fazer sombra e amenizar o sol quando olhava o gado no pasto.
Suas mãos me erguiam do chão e me levavam para seus braços. Foi, pois, insuportável, naturalmente chocante e repulsivo, senti-las frias, cruzadas, inertes sobre seu peito quando morto: o maior castigo que a vida até então me dera. Eu tinha 11 anos.
Maristela diz, na Introdução deste livro, que escrever sobre seu pai - falecido quando ela contava apenas 11 anos - surgiu da vontade de encontrar-se consigo mesma: “Pude reavivá-lo e restabelecer-me com sua presença ausência”. E esta revisão levou-a retomar outros lados de sua meninice; levou-a a falar da mãe, da escola... A presença-ausência do pai fez com que sondasse sua vida por meio da lembrança, também, de outras pessoas.
E, fundamentalmente, das lembranças daquele espaço, de alguma forma mágico, de sua infância: a cidade de Major Prado, no interior de São Paulo. E a sua escola: que manancial para pensarmos não em uma história da Escola Brasileira, mas em histórias e histórias das escolas brasileiras! Enquanto lia suas Memórias, eu me percebia quase que invejando a dedicação e o prazer de Maristela ao contar os fatos, descrever pessoas e situações.
A sensação de leveza, em certo momento, me fez pensar que a sua infância, a sua escola tinham sido mais coloridas do que as minhas. Pude ver, entretanto, como o tom de leveza que impregna estas memórias vem não só dos fatos narrados, mas, principalmente, do olhar adulto, distante, amoroso, mas crítico - muitas vezes irônico - de um narrador que pôde resgatar alegrias e perdas, dando-lhes a cor perpassada pela consciência de que se pode escrever sobre a infância não apenas nostalgicamente, pelas saudades de um tempo que não volta mais, como dizia Casimiro de Abreu.

Pode-se escrever, por ser esse tempo quase um espaço a ser revivido em busca da compreensão de nós mesmos, dos outros, e do mundo que nos cerca. Esse passado pode ser lido hoje nas articulações entre costumes, valores... Diz Riobaldo, narrador de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas: O que lembro, tenho. As narrativas de Maristela poderão deslocar os leitores para espaços próprios de lembranças, num reconhecimento do já tido e - quem sabe? - do nunca tido.

Malu Zoega

ORELHA DO LIVRO - À DIREITA
Maristela  Veloso Campos Bernardo
Nascida em Major Prado, distrito de Araçatuba, na década de 1940, alfabetizou-se na Escola Mista de Major Prado. Fez seu curso secundário no Colégio Nossa Senhora Aparecida – dirigido pela irmãs do Sagrado Coração de Jesus. Cursou a PUC-SP onde fez a pós-graduação, onde realizou seu doutorado. Foi professora da UNESP, sempre formando professores. Casou-se em 1965 e tem um casal de filhos. Apaixonou-se pela leitura quando criança e, na adolescência, copiou sua mãe que lia os grandes romances. Um deles O Egípcio, que foi proibida de ler, aos 13 anos, por ser considerada ainda criança pela autoridade materna. Contentou-se, então, com José de Alencar. Hoje lê os clássicos, sua paixão, mas não deixa de lado os contemporâneos brasileiros. Começou a escrever suas memórias em 2006, muito mais para fazer uma catarse pela perda prematura de seu pai. Continuou a escrever depois disso. Hoje constrói seus contos, alguns deles publicados em "Encontro Pontual - Antologia Scortecci de Poesias, Contos e Crônicas", 2010.

Maristela e o vilarejo

Numa elegia famosa, Camões refere a lenda em que o poeta Simônides, conversando um dia com Temístocles, se propôs a ensinar a este uma técnica para se lembrar de tudo que lhe havia acontecido. O “capitão” Temístocles recusa esse ensinamento, pois preferia aprender uma técnica contrária, ou seja, a de esquecer os fatos passados de que participara ou que vivera; com as palavras do poeta assim se exprime a recusa de Temístocles:
Se me desses uma arte que em meus dias
Me não lembrasse nada do passado,
Oh! Quanto melhor obra me farias!
Toda vez que leio um livro de memórias, como este que acabei de ler, me vem à mente a “Elegia 4” do grande poeta português que principia com estes versos:
O poeta Simônides, falando
Com o capitão Temístocles, um dia,
Em cousas de ciências praticando,
Uma arte singular lhe prometia,
Que então compunha, com que lhe ensinasse
A se lembrar de tudo o que fazia;
Onde tão sutis regras lhe mostrasse
Que nunca lhe passassem da memória
Em nenhum tempo as cousas que passasse.
Gosto dessa elegia camoniana, por causa de suas lições, mas igualmente por causa das contradições que apresenta, contradições poéticas, bem entendido. Se ele, o poeta, parece seguir o conselho de Temístocles, em verdade o contraria: se a recusa de lembrar se apóia na duplicação do sofrimento, como é que há memórias que selecionam aquilo que vale para tornar mais compreensível o presente? Haveria prazer, e não sofrimento, em lembrar fatos do passado. Desde que os fatos sejam de algum modo relevantes, as memórias valem a pena, nos diz Maristela Veloso Campos Bernardo, em seu livro, A mulher olhando a menina (São Paulo. 2ª edição. Grupo Editorial Scortecci, 2010, 171 p.), livro que passo a comentar sob influência da leitura da elegia 4.
Na introdução, a autora expõe, sem subterfúgios, a causa profunda de seu texto ao apontar para as personagens principais de sua história. As personagens principais são dois indivíduos e uma instituição coletiva, a saber e respectivamente, o pai, a mãe e a escola. A causa profunda revela-se quando apresenta a personagem principal: Escrever sobre meu pai surgiu da vontade de encontrar-me comigo mesma. Na elegia camoniana, esta motivação corresponde à fórmula geral de “medir o presente com o passado”. No texto de Maristela, o passado tem limites definidos, a saber, a meninice. Com isso ela antecipa que a infância foi marcada pela presença do pai. Esta presença se faz forte, mesmo quando seu foco se volta para a mãe e para a escola. Por outro lado, essa meninice aflora com a mediação da palavra, que faz emergir os conteúdos guardados pela memória, sempre seletiva. E aí está um probleminha de veridicção, já que aí intervêm ou pode intervir a fantasia ou a imaginação ficcional. A autora tem consciência crítica dessas mediações quando confessa: “O que vi ou que não vi, mas digo que vi; o que foi ou que não foi, mas digo que foi; nada mais são do que os pendores de uma menina” (p. 17). Isso quer dizer que os limites definidos da meninice terão suas fronteiras “borradas” ou rompidas pela mulher que olha a menina. Pois a mulher, no presente, não olha propriamente a menina do passado, mas sim o que a menina olhou, ou que ela, agora adulta, tenta resgatar dos objetos do olhar (coisas, pessoas, fatos) da criança. Essas mediações acontecem frequentemente com o processo poético do lirismo.
A figura do pai centraliza as memórias, não só na primeira parte (“Meu pai”), que é a mais longa, mas também na segunda (“Mamãe”), atenuando-se e quase desaparecendo na terceira, na qual a vida escolar ganha o protagonismo, sendo notável aí a interferência reflexiva da autora, como educadora que é,
sobre as marcas que a escola deixou em sua formação. Esse movimento reflexivo torna a última parte menos subjetiva ou, se nos valermos de Emil Staiger, menos timbrada pela recordação e pelo devaneio, que costuma se imiscuir nos conteúdos de memória, tal como acontece em muitos momentos da primeira e da segunda parte. Destaco alguns desses momentos em que a autora se aproxima do limiar do lirismo: a descrição das mãos do pai e dos bordados maternos; a evocação do carro de boi e do movimento de compra e venda no interior do armazém; o afloramento do mistério possível dentro da mata fechada ou da fascinação causada pela descoberta das minas d’água; a recuperação das pequenas viagens pelos sítios e fazendas com as paradas determinadas pela curiosidade infantil; a rememoração dos afazeres domésticos e das pequenas dissensões próprias da vida escolar. Há muitos outros fragmentos de memória semelhantes e esses.
Dou-me conta de que este livro de Maristela Bernardo contém vários embriões de narrativas literárias, que muito provavelmente podem-se transformar, se já não se transformaram, em verdadeiros contos, seja de clima (ao modo de Tchekov ou até de Machado de Assis), seja de ação (segundo o desenho fixado por Guy de Maupassant): por exemplo, o episódio da carta ao papa durante a grande estiagem que assolou o noroeste e norte do Estado de São Paulo entre 1952 e 1953, as traquinagens infantis, os desastres e tragédias acontecidas com vizinhos ou conhecidos, uma reação inopinada e “dura” da mãe, os ciúmes infantis, a morte do pai, da qual a autora sequestra, compreensivelmente, qualquer pieguice sentimental, a decisão tomada pela mãe destemida de fazer os filhos estudarem na capital, decisão que se concentra numa frase curta que finaliza a segunda parte: Assim fizemos… A força da frase se compreende melhor depois que sabemos das vicissitudes enfrentadas por essa mulher após a morte do marido.
Por fim, o livro, ao trazer à tona fragmentos do passado, traz junto um contraste que costuma comparecer em boas obras de literatura: o contraste entre a aldeia (Major Prado) e a cidade (Araçatuba ou Rio de Janeiro) entre o riacho (Córrego Azul) e o rio (Tietê), com ênfase nos dois primeiros termos, o Córrego Azul e Major Prado. Não sei se o córrego ainda existe; sei que Major Prado mudou de nome, pois deixou de ser aldeia e distrito. O córrego mantém-se inesquecível e o vilarejo também, graças a este livro. Essa permanência me faz voltar ao início deste artigo, mas não ao mesmo poeta, embora português, e, como aquele do século XVI, enorme cronópio, que falando do riozinho de sua aldeia (e, portanto sobre sua aldeia), para opô-lo ao Tejo, assim escreveu:
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente, 
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Disse o grande Tolstoi que sua aldeia resumia o Universo. Fernando Pessoa, pela voz de Alberto Caeiro, escondendo o nome de seu riozinho, o preserva da posse alheia; Maristela Bernardo adota o caminho do escritor russo, e faz-nos conhecer o vilarejo de sua meninice. E se não conseguiu preservar, materialmente, seu córrego azul com os misteriosos e fascinantes minadouros, nem pôde garantir no mapa geográfico o nome de sua aldeia, plasmou nesta tela de memórias, que é seu belo livro, o encanto de seu lugar da infância. E este é um modo de permanência “mais livre e maior”.
Antonio Manoel dos Santos Silva, professor de literatura da Unesp

3 comentários:

HAMILTON BRITO... disse...

Eu conheci a fazenda em Major Prado. O irmão da escritora, José Rui Veloso Campos era meu amigo e companheiro de classe ( suponho ainda ser mesmo levando em conta o tempo e a distância) no curso de letras, na Toledo. Foi cronista social no jornal A tribuna da Noroeste, contemporâneo da Odete Costa.

Unknown disse...

Eu trabalhei com, a senhora Maristela campos bernaBer, em 1991 , saí da casa dela é fui trabalhar em uma empresa, meu maior sonho é um dia antes de morrer quero muito encontra a dona Maristela, . pôr favor me ajudem

Hélio Consolaro disse...

E-mail da Maristela: marisvcb@uol.com.br. Entre em contato com ela.l