AGENDA CULTURAL

27.1.14

"Vem pra rua" e "rolezinhos": em busca da cidade ideal



Em junho do ano passado tivemos, sem dúvida alguma, uma das mais marcantes manifestações do povo brasileiro, que invadiu os grandes centros urbanos protestando contra o aumento das tarifas de transporte coletivo. O que na verdade estava embutido no protesto – e que acabou se desdobrando em outras reivindicações – era o direito ao acesso à cidade.

Não de agora, o confronto entre classes sociais e a discrepância entre as forças que nelas operam provocam essa tensão. Na antiguidade, cidades inteiras eram invadidas e saqueadas, causando mortes, estragos e mudando as formas de pensar, agir e configurar o tecido geográfico das urbes. 

Mesmo em épocas e povos tidos como mais civilizados e desenvolvidos, este fenômeno de impasse social ocorreu, e, claro, as categorias sociais menos favorecidas sendo as mais prejudicadas.
Só a título de exemplo, podemos citar a Reforma de Haussmann, que na segunda metade do século 18 tornou Paris muito mais bonita e atrativa, com largas avenidas e pomposos jardins, mas que, para isso, expulsou os pobres que residiam nas áreas nobres para os cantos da cidade. Uma reforma que visava facilitar, justamente, a ação dos militares contra os “revoltosos”, que faziam barricadas e enfrentavam a polícia de cima de suas casas, nas estreitas ruas da cidade, deixando os policiais vulneráveis.

As últimas semanas foram palco de um novo fenômeno, com repercussão na mídia internacional, também encabeçado por jovens, e oriundo de mídias sociais da internet, denominado “rolezinho”. Trata-se de um passeio organizado por adolescentes e jovens, a partir do Facebook, que culmina no acesso de centenas ou milhares de pessoas, ao mesmo tempo, a shoppings, também das grandes cidades brasileiras.
Em alguns casos, houve problemas com depredações e saques, mas, em geral, todos esses encontros aconteceram de forma pacífica e regrada. O que assustava, isso sim, num primeiro momento, era o volume de pessoas que adentrava ao ambiente. Ou será que não? O que mais poderia incomodar os habitués desses grandes centros de luxo e consumo da modernidade? Seriam os cabelos desarrumados e mal coloridos da garotas pobres? As roupas e acessórios cafonas dos “manos” que ali estavam? Os gestos largos e as risadas exageradas, sem nenhuma orientação prévia de algum consultor de etiqueta? Ou seria a cor da pele deles que contrastava com o brilho dos dourados de revestimentos e corrimões?

Nos dois casos, tanto no “Vem pra rua” quanto no “Rolezinho”, a presença de determinadas pessoas em determinados lugares da urbe é algo que incomoda. Há certo desconforto por parte de um grupo de privilegiados, que sente ser o dono de tudo e de todos, calcado numa tradição, inclusive brasileira – pensemos na escravidão aqui no Brasil, uma das últimas a ser extinta no mundo –, na qual poucos são servidos por muitos, onde quem pode mais chora menos.

Numa “sociedade” que não está a fim de mudar o modus operandi das coisas para não sofrer prejuízo de espécie alguma. Uma “sociedade” – por vezes chamada de “alta” – que quer ver a “baixa” cada vez mais para baixo, confinada em suas casas nos finais de semana, suando em seus barracos nos confins do mundo, engolindo as porcarias que são vomitadas pelos programas da tevê aberta para, na segunda-feira, retomarem a cidade, sob a condição de vassalos dela.

Há que se pensar na cidade para o cidadão. Há que se pensar lugares e meios de dar acesso a eles, de forma que os moradores da urbe, todos eles, se apropriem e interajam com esses espaços, seja sob forma de lazer, atividade física, cultura, contemplação ou sob qualquer outro aspecto. A esse acesso e apropriação dos espaços da cidade estão relacionadas questões ligadas à saúde, segurança pública, autoconhecimento, criatividade, entre outros elementos que não são objeto dessa nossa reflexão, mas que precisam ser levados em conta.
Nos dois casos, a alternativa “repressão” foi a escolhida pelos nossos governantes para solucionarem o "problema" dos rolezinhos. Coibir, minar, castrar também fazem parte da tradição brasileira, ainda muito recente em nossa memória e vida e, a partir da qual, muitos querem lançar mão. Não há mais espaço para isso (se é que algum dia houve). Numa sociedade como a nossa, quando o Brasil está a caminho de configurar entre as potências mundiais, tentar resolver um impasse sob bala e bomba de gás lacrimogêneo é um disparate, para não dizer um crime, como configura a Organizações das Nações Unidas. Aos baderneiros, cadeia. Aos protestantes, ouvidos.

Qual será o próximo “movimento urbano” com o qual teremos acesso nos próximos meses? Qual será a “nova onda” de manifestação a partir da qual teremos que nos debruçar sobre o que é “certo ou errado”, sobre o que “pode ou não pode”? Quando sairemos de nosso confortável “berço esplêndido” e passaremos a nos organizar e a nos colocar como cidadãos, de fato, cumpridores de direitos e deveres, conscientes de nossa condição diante do mundo? Quando passaremos a pensar na cidade para o cidadão?

Antonio Luceni é jornalista e escritor, estudante de Arquitetura e Urbanismo, pós-graduando em Arquitetura e cidade.

2 comentários:

eliana castela disse...

Muito bom o artigo

Anônimo disse...

Gostei muito do artigo.