AGENDA CULTURAL

23.12.14

A moça do violino


Hélio Consolaro*

Em todas as apresentações de orquestras, fico a procurar uma moça violinista, séria e que executa anonimamente a sua arte, e sempre a encontro com meus olhos ávidos.

Assim, vou ouvindo a música e namorando a violinista, sem que ela perceba. Ela não sorri, é uma estátua com movimentos ensaiados, como se não houvesse sentimentos.

Com certeza, lutou muito para ocupar aquele lugar na orquestra para produzir alguns sons que encaixassem noutros, sincronizados, formando uma grande obra. Aguenta sempre o maestro ranzinza.
Até usamos a palavra orquestra numa catacrese: “Aquela empresa funciona tão bem, parece uma orquestra”.

Numa orquestra, tudo é simétrico, nada espontâneo. Nem mesmo o regente, apesar de seus movimentos largos, tem alguma liberdade. Cumprem “script”, repetem com mais perfeição o ensaio. E a plateia em êxtase, como no Coliseu, insensível ao sofrimento dos gladiadores, grita:  

- Bravo!

Nem parece que ser violinista foi uma escolha vocacional, até parece que ela cumpre pena de trabalhos forçados.
Na orquestra, há os profissionais que chegam depois e são aplaudidos, principalmente o maestro. A multidão de músicos da orquestra se contenta em ser um tijolinho, está lá para fazer outros brilharem.

Com certeza, cada músico da orquestra se realiza como tal noutras atividades, nalguma banda de rock, por exemplo. Na orquestra, apenas garante o salário fixo.
A estátua viva, a moça do violino, minha namoradinha naquele momento de êxtase, não tem olhos para meu afeto, embora a música seja só sentimento.

O espetáculo terminou. Todos correram para cumprimentar o maestro. Usei a prerrogativa de meu cargo e fui nos bastidores cumprimentar a minha namoradinha. Todos os músicos conversavam entre si, sem preocupação em receber fãs, porque não existiam. Ela, toda sem jeito, recusou meu cumprimento entusiasmado:

- Não! Não! Não é a mim quem deve cumprimentar, mas ao maestro, é ele que harmoniza os sons.

Expliquei-lhe o óbvio: não existe orquestra sem músicos. E dei-lhe um abraço apertado, como a dizer-lhe: não gostei do maestro, gostei de você.

E ela sumiu na poeira da estrada, seguiu a sua corporação. Certamente, outra orquestra virá por essas paragens, quando terei outra namoradinha, outra estátua viva.


*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP

2 comentários:

As Pires disse...

Professor, o senhor colocou em palavras o que senti assistindo aquele espetáculo!

HAMILTON BRITO... disse...

Bem, abraçar o maestro pela harmonização do conjunto tem a sua lógica mas abraçar a violinista tem mais poesia...e mais de acordo com as nossas tendências né memo?