AGENDA CULTURAL

27.5.16

Jumento é um bem esgotável

Tharso Ferreira* 

Nas minhas agruras de menino, eu lia Marx para suportar minhas angústias de pobre. Era uma leitura solitária, pois sua obra é universalmente conhecida e não lida. Nosso Brasil dos anos setenta era um lixo áspero contaminado por ideias que fariam estragos no futuro, era um mundo estéril que não valia a pena viver.

Lembro-me de Zildanã, minha mãe, no meio da multidão de galinhas assustadas correndo no quintal falando que um dia eu teria um emprego digno, assalariado, numa fábrica qualquer, enquanto eu replicava lendo Marx e sua lendária mais-valia, sentindo pela janela as fragrâncias ácidas do galinheiro que impregnava o ar enquanto minha mãe batia no fundo de uma gamela antiga jogando punhados de milho para o alto, ajuntando as galinhas aos seus pés, enquanto minha irmã caçula berrava aparvalhados uivos de criança febril tomada de catapora agarrada nos alambrados que as galinhas em seus tráfegos de vai e vem não respeitavam de jeito nenhum. Era-me tudo misturado naquele imenso e amorfo mundo pobre cheio dos rumores da felicidade humana.

Marx era-me um guru de insólita sabedoria de irresistível tentação, estava sempre presente em minhas alucinações para mudar o mundo. Marx era uma coerência em meu mundo incoerente, ele me dava um gozo radiante e solitário, estava além de tudo isso. Eu o perseguia, conforme meu entendimento, seus ensinamentos sobre divisão de classes, proletariado, manipulação das massas, mas minha vida nunca se alterou, pois eu, como todo mundo lia, mas não entendia. Só com boa vontade não se faz um Marxista. Eu tinha uma determinação inapelável para as ciências sociais, passava a maior parte da noite lendo Marx na cama, suando os lençóis, até cantarem os galos. Era uma maneira de eu negar meus próprios abismos de pobreza. Foi por conta de Marx que recusei os prazeres do mundo, negava minha existência, às vezes cogitava até a morte no meio daquele cheiro nauseante de galinheiro, naquele barulho incessante de rádio ligado no Rogerinho, gritos de crianças felizes, latidos de cachorro perseguindo carros na rua, risadas de homens no baralho, gargalhadas de mulheres na cozinha, ruído de louça na pia, e então me julgava um sábio só por ler Marx. Tolo engano, Marx é incompreensível, ilógico e além do nosso tempo. Os comunistas do mundo arrastaram erradamente suas ideias e fizeram de sua genialidade lixo, provocaram uma revolução de mortos, mesmo agora que as marés de suas ideias abaixaram ainda flutuam os restos impunes dos delitos cometidos pelos seus poucos representantes infiéis que dizem representá-lo.


Se você gosta de ler livros de homens barbudos, leia a Bíblia, dizia Zildanã, consumindo-se em ódio por ver Marx encalhado em minha cabeceira enquanto ia pelo meu pobre quarto colocando tudo em ordem e me chamava para tomar café na mesa da sagrada família com aquela expressão de mãe contrariada.

Minha única vontade – dizia - é que você leia a Bíblia com a fé que você lê este livro. Falava isso quase todas as manhãs quando o sol estava se metendo timidamente para dentro de nossa casa com sua claridade santa, uma de minhas lembranças mais felizes, enquanto eu ensimesmado imaginava que o mundo só seria curado de suas angústias com as ressonâncias universais de Marx, pois todos os abismos de sofrimento estavam na divisão de classes. Isto me era quase uma consciência espiritual que Marx me dizia quando desfrutava de suas linhas repletas de seu comunismo científico.

   Não nego, os ensinamentos de Marx da primeira metade do século XIX ainda vivem timidamente em mim, e haverá de estar enquanto houver alguém que precise trabalhar para alguém só para matar a fome. Penso nas mulheres antigas que puxavam vagões nas galerias das minas de carvão por serem mais baratas que os cavalos, num ambiente sufocante, imundo, só para que os filhos não morressem à míngua. Marx ainda vive em mim porque ainda vejo homens e mulheres mendigando trabalho em nome de uma prosperidade que nunca chega ditadas pelas economias políticas que mais tiram do que dão.


Pobre tem menos valor que um escravo, escravo era propriedade valiosa, e propriedades não se destrói, não se deixa à míngua, mas o escravo alforriado é abundante e barato e foi aí que as classes que dominam se deram ao luxo de esbanjá-los em recursos de mão de obra. Substitui-se um trabalhador por uma ninharia. Pobre parece brotar do solo feito tiririca, onde os dominantes se acham no direito de explorarem como bem querem.

Nenhum homem é cauteloso com seu operário, pois operário não é um bem como é um jumento ou um cavalo, ou um carro. Nós gostamos de um suprimento dilatado de trabalhadores para ser explorado. Máquinas hoje substituem trabalhadores aos montes e tornam tudo mais barato, até os alimentos que esbanjamos e desperdiçamos. Somos extravagantes, mas não somos tolerantes, gastamos o que dizemos ser nosso o que é de todos, os cuidados com o planeta só está em pequenos círculos científicos que ninguém dá bola. A terra anda liberando cada vez mais seu espírito de vingança e por certo matará todos nós para que outros mais eficientes nos substituam com sabedoria para compensar nossa falta de qualidade humana. Marx ainda não está tão velho assim e vai viver mais que Cristo para nos tirar do erro. O zumbido de Marx misturado aos cacarejos das galinhas ainda vive em mim cheio de suas potências demasiadamente humanas.


*Tharso José Ferreira é membro da Academia Araçatubense de Letras.

3 comentários:

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Belíssimo texto. Obra prima, como sempre. Uma pena que discordemos em um ponto fundamental. Dificilmente a obra de Marx viverá - e acrescento: dificilmente terá mais resultados na vida prática - do que a Cristo. Um abraço! Sucesso sempre.

Ventura Picasso disse...

Bom dia Tarso - "Jumento é um bem inesgotável". Há uma mensagem obnubilada no titulo dessa crônica maravilhosa. Carlos Marx é eterno. Descendente de família protestante, possivelmente, conhecia as classes sociais, tanto quanto o filósofo bispo católico da Teologia da Libertação Dom José Maria Pires, na divisão do pão o Corpo de Cristo, consagrava a 'comunice' do povo. Tenho no armário os três do 'El Capital - critica de la economia politica' de Marx - ed. Fondo de Cultura Económica - Mexico - Trad. Wenceslao Roces - 1958. As máquinas quando danificadas obtém a melhor manutenção que existe; o trabalhador quando doente é simplesmente substituído. Ler Marx é renovar a esperança de que é possível um mundo fraterno, humanitário e feliz... PARABÉNS!