AGENDA CULTURAL

4.5.21

Poucas águas de março

 

Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP 

Não sei se não vi, mas as águas do último verão foram escassas, nem fez muito calor. 
Se para os habitantes de morros e varjões isso foi uma tranquilidade, para o clima  geral é motivo de preocupação.  

Não vi paus, pedras, garrafas de plástico, móveis usados descerem ribanceira abaixo como canoas desgovernadas. Nem presencialmente e nem pela televisão. Isso não significou que não tenha morrido muita gente, mas por outro motivo: a covid 19.

As duas tragédias estão interligadas, tendo como causa o nosso descuido pela nossa  grande casa, o planeta. O Antigo Testamento narra as sete pragas do Egito. Se Deus fica irado com a humanidade, ele se manifesta pelas aberrações. Assim acreditam os místicos.  

Os índios sabem, o caboclo também, que não se constrói nada onde nasce a taboa, uma espécie de planta que dá espeto de churrasco como fruto. Construir casas no espigão sempre foi a melhor recomendação dos antigos.

O urbanismo irresponsável, também chamado de especulação mobiliária, loteou e construiu casas até na beirinha dos rios, riachos e córregos. Lotes mais baratos, onde a pobreza compra ou invade para fazer seus barracos. 

Chega a época de enchente, quem não tem nada perde tudo. Essa situação deixa os atuais prefeitos, herdeiros de uma política errada, com os cabelos em pé ao ouvir um trovão.  Para quem morou (ou mora) em zona rural, em casas frágeis, uma tempestade carregada de água é motivo de a família se guardar debaixo da mesa. Telha de casas não forradas podiam cair na cabeça de alguém, mas ninguém reclamava, porque a chuva era motivo de colheita farta. Era uma casa aqui, outra acolá, quando muito, alguém era atingido por um raio. 

Taboa

A tempestade, o vendaval, o granizo para mim são a fúria da natureza, quando me sinto selvagem indefeso  sobre o planeta. Essa bola rolando no infinito com seres viventes em sua superfície.

Sou herdeiro do medo primitivo. Isso foi mistério para nossos índios, tanto que Tupã, o trovão, era o seu deus. O estrondo era a fúria divina. 

Até que surgiu um compositor de música popular brasileira, o Tom Jobim, astro da Bossa Nova, que atravessava uma má fase na vida em 1972, foi morar num rancho de um amigo, em março.  E a chuva bateu pesado, como reação compôs a música "Águas de março". 

Nesse 2021, com mês de março seco e genocida, até a música passou despercebida. 

    

2 comentários:

Unknown disse...

Que texto lindo Hélio!

Maria zei disse...

Como sempre,Hélio Consolaro consegue escrever o que sinto e não sei por no papel.Parabéns,prof.Hélio.