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24.9.06

Para não dizer que não falei das armas

Hélio Consolaro

Ontem (23/9/2006), caro leitor, começou a primavera. E eu nasci nesse dia, meio torto, nas unhas do fórceps, querendo não vir. Naquele tempo as flores eram coisas de gente sonhadora. Revolucionário era ser o senhor das guerras.

Houve tempo em que meu canhão atirava mesmo grandes torpedos ideológicos. Hoje, meio velho, enferrujado, nem mais dá tiros de festim, atira apenas flores. Os passarinhos fizeram ninhos em sua culatra ou o Tistu encostou o seu dedo no meu coração...

Na década de 70, falava-se muito das flores contra o canhão. Aí veio um cara que fez uma canção, ironizando: “Ainda fazem da flor seu mais forte refrão,/ E acreditam nas flores vencendo o canhão”, mas os canhões vinham mesmo, disfarçados e multifloridos, e atiravam de verdade. E as ruas viravam uma praça de guerra.

No outro lado do mundo, outros poetas lamentavam a guerra: “Cabelos longos não usa mais, / nem toca a sua guitarra e sim/ Um instrumento / o que sempre dá a mesma nota ra-tá-tá-tá”.

E o poeta daqui chamava a multidão: “Vem, vamos embora que esperar não é saber,/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Ensinava a desaprender a antiga lição: “De morrer pela pátria e viver sem razão”.

Mas tudo virou bosta. Houve a Primavera de Praga em que o sonho de liberdade foi sufocado; aconteceu a rebeldia de estudantes na França, mas “paz e amor” viraram consumismo. Um estudante enfrentou um canhão em Pequim e desapareceu. Fidel Castro está caquético.

Sempre, a delicadeza das flores enfrentou a brutalidade dos canhões. Os jardins sempre são esmagados, mas reflorescem logo após, regados pela teimosia dos poetas, mas a marcha marcial continua fria e indiferente.

Hoje, parodio um verso da canção de Geraldo Vandré e venho neste início de primavera falar de armas, porque os ingênuos que só queriam flores, agora querem armas para se defender, se trancar dentro de casa. O medo virou uma bandeira hasteada em cerca elétrica.

Os revolucionários de hoje não são guerrilheiros, são pacifistas, ecologistas, gente que acredita no voto, na não-violência e faz do poema uma canção de paz.

Para ser multidão, fiz essa crônica. Embora eu goste de flores, estou aqui para lhe dizer de armas, de pena de morte, de Carandiru para todos, é isso que anda “pelas ruas marchando indecisos cordões”.

Mas eu ainda grito, por não saber cantar: “Vem, vamos embora que esperar não é saber/ Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Reguemos os jardins, vivamos a primavera. Nem que seja para fazer coro com o poeta: “Uma flor nasceu na rua!”, porque podemos nos revoltar sem armas.


Veja letra da música:
http://geraldo-vandre.letras.terra.com.br/letras/46168/

2 comentários:

  1. Adorei essa crônica, nunca ouvi essa música de Geraldo Vandré, mas conhecia esse tão famoso refrão: "Vem, vamos embora que esperar não é saber,
    Quem sabe faz a hora, não espera acontecer"...
    Já estou até decorando a canção,rs...
    Até a próxima.

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  2. Ventania
    Geraldo Vandré

    Composição: G. Vandré/H. Accioly


    Meu senhor, minha senhora,
    vou falar com precisão.
    Não me negue nessa hora,
    seu calor, sua atenção
    A canção que eu trago agora
    fala de toda a nação.
    Andei pelo mundo afora
    querendo tanto encontrar
    um lugar prá ser contente
    onde eu pudesse mudar.
    Mas a vida não mudava
    mudando só de lugar.
    Que a morte que eu vi no campo
    encontrei também no mar.
    Boiadeiro, jangadeiro iguais
    no mesmo esperar,
    que um dia se mude a vida
    em tudo e em todo lugar.
    Prá alegrar eu tenho a viola
    prá cantar, minha intenção,
    prá esperar tenho a certeza
    que guardo no coração.
    Prá chegar tem tanta estrada
    prá correr meu caminhão.
    Já soltei o meu cavalo.
    Já deixei a plantação.
    Eu já fui até soldado,
    hoje muito mais amado
    sou chofer de caminhão.
    Já gastei muita esperança.
    Já segui muita ilusão.
    Já chorei como criança
    atrás de uma procissão.
    Mas já fiz correr valente
    quando tive precisão.
    Amor prá moça bonita,
    repeito prá contramão,
    saudade vira poeira,
    na estrada e no coração.
    Riso franco, peito aberto,
    sou chofer de caminhão.
    Se você não visse certo,
    se não ouve o coração,
    não se chegue muito perto,
    não perdôo ingratidão.
    Riso franco, peito aberto,
    vou cantar minha canção.
    De setembro a fevereiro
    o que vir não vou negar.
    Rodando país inteiro,
    norte, sul, sertão e mar,
    aprendi ser tão ligeiro
    que ninguém vai segurar.
    Fui vaqueiro e jangadeiro,
    no campo e no litoral.
    Cantador serei primeiro,
    cantando não por dinheiro,
    por justo anseio geral.
    Cantador serei primeiro,
    cantando não por dinheiro,
    por justo anseio geral.
    Cantando por justo anseio geral.

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