AGENDA CULTURAL

23.10.11

Ode ao burguês - Mário de Andrade (convite)



Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
O burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano
É sempre um cauteloso pouco-a-pouco!

Eu insulto as aristocracias cautelosas!
Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros!
Que vivem dentro de muros sem pulos;
E gemem sangues de alguns milréis fracos
Para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
E tocam o Princitemps com as unhas! 

Eu insulto o burguês-funesto!
O  indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam amanhãs!
Olha a via dos nossos setembros!
Fará o Sol? Choverá? Arlequinal?
Mas à chuva dos rosais
O êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
Ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suíça! Morte viva ao Adriano!
“ – Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
- Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
Sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante

Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
Cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!

Fora! Fu! Fora o bom burguês!...


Vocabulário
Burguês: indivíduo que se estabeleceu nos burgos e posteriormente nas cidades medievais em que estes se transformaram, e eu se caracterizava pelas suas  atividades lucrativas e por não exercer trabalho braçal ou artesanal. Sentido depreciativo: indivíduo sem nobreza ou largueza de idéias, apegado a valores materiais, a hábitos e tradições convencionais.

Printemps: em francês, primavera, trecho de música erudita (As Quatro Estações, de Vivaldi) – alusão sarcástica ao hábito de gente colonizada de tocar piano, como marca de requinte cultural. 

Burguês-funesto: sinistro, desastroso, prejudicial.

Adiposidade: gordura excessiva

Arlequinal: o autor utilizou essa palavra mais de uma vez, para descrever aspectos da cidade de São Paulo, por analogia à roupa do arlequim composta de losangos cinza e ouro. Neste caso, para fazer referência à imprevisibilidade e instabilidade do clima, em oposição à estabilidade previsibildidade do burguês.

Tílburi: (carro de duas rodas e dois assentos, sem boléia, com capota e puxado por um só cavalo) – referência ao hábito burguês de se utilizar desse veículo de locomoção, ostentando poder e riqueza.
Adriano: alusão ao imperador romano, para caracterizar os donos do poder.

Pasmo: espantado, atônito

Secos e molhados: designação comum ao comércio de alimentos. Armazém, empório. Hoje seriam os supermercados.

sempiternamente: perpetuamente, continuamente, incessantemente.

Mesmice: pasmaceira, estado daquilo que não varia

de giolhos: (de joelhos) – referência à posição de fiéis no genuflexório das igrejas. 

Fu!: interjeição que indica nojo ou desprezo.

Ode (feminino): palavra que em grego significa “canto”; poema lírico que, em geral, exalta alguém ou alguma coisa, caracterizando-se por um tom alegre, entusiástico. 

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