AGENDA CULTURAL

12.12.14

Caipira não é Jeca! O jeca é mentira do Lobato!

Luiz Mozzambani Neto*


O jeca é personagem literário, não é caipira, caipira é de verdade e só gosta da mentira bem contada, que nem chega ser mentira, porque causo bem contado é verdade, coisa acontecida, que a gente jura que aconteceu e se a gente jura, aconteceu (!), porque caipira não jura falso, que é pecado, Deus não gosta, e quando jura, Deus castiga, mas o Jeca é mentira do Lobato (!), no livro Urupês, de 1918,  mentira velha que até o velho Rui Barbosa usou num discurso velho e mentiroso pra jogar nas nossas costas a culpa deste povo lá de cima, que só está lá em cima porque Deus finge que não vê tanta safadeza que acontece desde que o Brasil nem era Brasil direito e o caipira ainda era mameluco e matava índio pra ser filho do pai branco que não queria um filho índio e foi fazendo mamelucos que encheram a Paulistânia desta gente que é o caipira, cuja terra foi roubada, cujo tempo foi tirado, mas que a alma ainda afina a viola do seu jeito pra dizer que vem do peito este jeito de lidar com o nosso tempo nesta terra que é nossa, mesmo estando em outro nome, que o nome não é nada, mas a terra é sagrada e o caipira tem direito de lavrar a sua terra, de lavrar a sua língua, de plantar sua semente, de colher a vida em versos, de tocar sua viola e dizer que debaixo desta terra tem caipiras cujos corpos enterrados são raízes que sustentam nosso jeito de dizer que o caipira não precisa do burguês dizendo as horas, que na roça sempre sobram os minutos que se perdem, dizendo as horas, que as horas do caipira sempre têm esses minutos para a prosa com quem diz o que diz sem ligar pro “jeito certo” da palavra se encaixar nessas regras tão usadas pra calar nossos amores por vergonha dos doutores que nem sabem o que dizem e ensinam o “jeito certo” da gente prosear, como se a gente não soubesse contar histórias, logo a gente que proseia com Deus e todo mundo, com a gente mesmo, e até com passarinho, que caipira nunca fala sozinho, está sempre se escutando, pois a gente se conhece, conhece a vida, conhece o mato e sabe o que acontece quando o coração vai pro mato de mãos dadas com a cabeça, a gente sabe e só finge não saber, muda o rumo da prosa, conta outra história, que história nunca falta, nem vontade de contar, mas a gente não fala com quem só repara nossa fala, não dança com quem só mede nossa roupa e nem se dá com quem só tira o nosso gosto de dizer as histórias do jeito que aconteceu, e se for para mentir, com mentira bem contada, que a gente jura que aconteceu, e se a gente jura, aconteceu (!), que caipira nunca mente, quando muito, simplesmente, faz Literatura colocando palavras inventadas nas bocas do menos sabidos e coragem aumentada nos feitos dos mais brigões, mas isso só para vestir a história com uma roupa mais bonita, que chega a vida sempre com seu vestidinho de chita, a gente também gosta de beleza, de um pouco de aventura, mas não gosta de mentira e o Jeca é mentira do Lobato.


*Luiz Mozzambani Neto
escritor e pesquisador caipira

Fluxo de consciência publicado na 2ª edição do livro "Queima do Alho: alimento do corpo e da alma do peão de boiadeiro"

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