Jornal O Liberal
Visão panorâmica - Jardim das Flores |
*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP
Sou
de uma época, inclusive fui vereador nela, em que a Lagoa das Flores era
um trauma para a cidade de Araçatuba: inundações em todos os anos. A população do Jardim
América aguardava a estação chuvosa com o coração na mão.
Alguns
prefeitos faziam ouvidos moucos, não ouviam o clamor do povo, outros tomavam parte do forféu, iam até lá
ajudar a carregar os móveis das casas. Solução mesmo, nada.
Havia
duas versões para as causas de tais enchentes.
VERSÃO
RELIGIOSA (MÍTICA): a lagoa foi soterrada com os entulhos da demolição de dois
templos da igreja católica: matriz Nossa Senhora Aparecida (centro) e capela
São Benedito (bairro Santana). A enchente era interpretada como um castigo divino, enquanto houvesse na
lagoa uma pedra, um tijolo dos escombros dos dois templos, haveria enchentes que começaram com o soterramento.
VERSÃO
CIENTÍFICA: as lagoas são lugares da decantação das águas fluviais (das
chuvas). O caboclo, homem da roça, com seus conhecimentos empíricos dizia que em lugar onde
nasce taboa (uma planta do brejo), não se constrói porque é o espaço sagrado
das águas. Mas o conhecimento dos engenheiros era soberbo, acreditar em
caboclo! Entulho na lagoa, enchente nas casas.
Como
resolver? A engenharia apresentava projetos caríssimos, que a Prefeitura não ia
ter nunca. Não sei se os engenheiros queriam ganhar dinheiro ou era ignorância
mesmo. E o problema era empurrado com a barriga, e o povo sofrendo com as
enchentes.
Até
que de 2009-2016 fui secretário de Cultura de Araçatuba, administração de Cido
Sério (era PT). Ele fazia uma administração compartilhada, com reuniões de
todos os secretários às segundas-feiras, 8h. Com isso, todos tomavam ciência
dos problemas da cidade em todas as pastas.
Na
época das chuvas, a enchente deixava as reuniões tensas, prefeito bravo,
secretário de obras fungando.
Prefeito
Cido Sério determinou que os escombros das igrejas fossem retirados com pás
escavadeiras, máquinas grandes. Era para chegar até a última pedra.
Pronto.
Nenhuma pedra das igrejas demolidas, mas as grandes chuvas ainda provocam
enchentes, menores, mas prejudiciais.
Numa
das reuniões de segunda-feira, dos secretários, prefeito Cido Sério determinou
ao secretário de Obras (vou omitir o nome dele propositalmente) que instalasse
uma draga junto à lagoa das Flores. Na hora que a água subisse demais, ligasse
o aparelho para jogar a água fora da lagoa.
Secretário
de Obras se negou a fazer isso: "Vou ser gozado por meus colegas
engenheiros. Não vai dar resultados".
O
prefeito Cido Sério estufou o pescoço e gritou:
-
Se não fizer, está demitido a partir de amanhã!
A
draga está funcionando até hoje. Não há mais enchentes na lagoa das Flores. E o
engenheiro-secretário ficou com a cara no chão.
As
duas versões explicaram o fato, cada uma de um jeito, mas com semelhanças. Tirar a
última pedra foi um milagre, mas também fruto do raciocínio humano.
Sou
pela ciência, mas se faz necessário incluir a tradição no rol dos conhecimentos
humanos. Há a arte, a filosofia, a ciência, mas a tradição faz parte da
estrutura cognitiva das pessoas.
Certamente, há casos pitorescos ocorridos nas administrações de outros prefeitos ou prefeitas, mas não presenciei tão de perto.
2 comentários:
Belíssimo esclarecimento que deve ser considerado como registro de um fato histórico. Parabéns amigo.
Segundo ouvi nessa época que essa ideia em colocar uma draga foi baseada numa cidade Europeia a qual sofria desse mesmo problema.
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