AGENDA CULTURAL

29.7.19

Toda viagem é inútil


Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP

Se você, caro leitor, for um viajor que não para em casa; meio ano de vida doméstica, e o outro meio vive errante, com certeza, há alguém falando mal de suas andanças pelo mundo neste momento. 

Inveja pura! Aquele que maldiz sua vida cigana, certamente queria ter dinheiro para fazer o mesmo. Com tanta viagem, estão até falando em levá-lo à Lava Jato, que ultimamente anda vazando tudo.

O sujeito que viaja muito é meio falastrão, em qualquer rodinha, arruma oportunidade de falar de sua última viagem. Ninguém aguenta mais tanta metidez. 

Tenho um amigo que está nessa fase da vida. Não viajava, o negócio dele era viajar pelos livros. Não era um sujeito sem dinheiro, era ranzinza mesmo. De repente, descobriu que não resta muita estrada para caminhar, todos os anos, cata a "mulherzinha dele" e some prás Oropas.

Entre uma viagem dele e outra, descobri um poema de Wally Salomão (como bom poeta, já é falecido) que acaba com esse povo que vive com a mala nas costas, passeando pra lá e pra cá.

Esfreguei as mãos. Era minha vingança. Telefonei, disse que havia encontrado um belíssimo poema para que ele fizesse uma reflexão. 

Respondeu:

- Mande aí, pelo e-mail, vou analisá-lo. 

E assim foi. Eis o poema, caro leitor:


ANTI-VIAGEM
Waly Salomão
Toda viagem é inútil,
medito à beira do poço vedado.
Para que abandonar seu albergue,
largar sua carapaça de cágado
e ser impelido corredeira rio abaixo?
Para que essa suspensão do leito
da vida corriqueira, se logo depois
o balão desinfla velozmente e tudo
soa ainda pior que antes pois entra
agora em comparação e desdoiro?
Nenhum habeas corpus
é reconhecido no Tribunal do Júri do Cosmos.
ir e vir livremente
não consta de nenhum Bill of Rights cósmico.
Ao contrário, a espada de Dâmocles
para sempre paira sobre a esfera do mapa-múndi.
O Atlas é um compasso de ferro
demarcando longitudes e latitudes.
Quem viaja arrisca
uma taxa elevada de lassitudes.
Meu aconchego é o perto,
o conhecido e reconhecido,
o que é despido de espanto
pois está sempre em minha volta,
o que prescinde de consulta
ao arquivo cartográfico.
O familiar é uma camada viscosa,
protetiva e morna
que envolve minha vida
como um pára-choque.
Nunca mais praias nem ilhas inacessíveis,
não me atraem mais
os jardins dos bancos de corais.
Medito à beira da cacimba estanque
logo eu que me supunha amante
ardoroso e fiel
do distante
e cria no provérbio de Blake que diz:
Expect Poison From The Standing Water.
Ou seja:
Aguarde Veneno da Água Parada.
Água Estagnada Secreta Veneno.
Até agora, nenhuma resposta. Não sei se a mudez foi resultado de fastio ou desprezo.
Paro por aqui. Com licença, caro leitor, vou à casa lotérica, preciso sair dessa mesmice. 

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