AGENDA CULTURAL

18.4.20

Sanitária dependência estratégica - Carlos Botazzo



"...hoje nossa plataforma produtiva em saúde estreitou-se, e a tal ponto, que aqui não se deu conta de produzir aventais, máscaras e desinfetantes, como se fôssemos um pequeno povo habitando uma ilhota perdida no oceano."
Carlos Botazzo[1]
botazzo@usp.br
A epidemia de Covid-19 nos lançou numa espécie de vórtice metafísico. Primeiro, porque aqui só pode ser epidemia e no mundo, dada sua extensão, pandemia. Cidade e Mundo ou Urbi et Orbi. Vivemos, com o Corona vírus, momentos de intensa contemporaneidade global e nunca, nos últimos tempos, salvo pelas estripulias da Primeira Família, tÍnhamos tido tão caudalosa imersão nos assuntos do planeta. Que desta vez foi provocada por um ser microscópico, que Ser nem se pode dizer que seja, embora tenha tomado as proporções de um Ser heideggeriano: um ser-aí, um ser-em-si, um ser-no-mundo.
E constrange que ao lado do isolamento social e das vicissitudes que tal prática acarreta a tantos que tenham que se isolar, ainda tenhamos que vivenciar o medo aumentado pelo cálculo que, finalmente, poderia nos informar coisas triviais como ter ou não ter testes suficientes e em massa; exames laboratoriais com resultado em tempo quase real, incluindo o dos já mortos; laboratórios públicos equipados e com técnicos suficientes para processar análises; profissionais treinados e em número adequado para proceder ao acolhimento dos acometidos; unidades de saúde em número suficiente para atender aos necessitados de cuidados médios e finalmente terapia intensiva para os infelizes que venham delas necessitar. Mais, trata-se de saber se terão os pacientes e, antes deles, os profissionais, equipamentos de proteção individual e, em quantidade suficiente, dispositivos auxiliares para respiração, e leitos hospitalares para arcar com as estimativas futuras.
Sabemos neste momento que o Brasil, em termos de saúde pública, está fragilizado, isto é, foi estruturalmente comprometido e então é socialmente vulnerável, porque nos falta tudo aquilo que foi listado acima e um pouco mais. Nos faltam leitos de UTI, carecemos de testes e nossos laboratórios públicos mal cumprem a função burocrática de existir. De repente, nos percebemos na dependência, na terrível dependência de recursos tecnológicos e insumos externos, em meio à excruciante constatação de que hoje nossa plataforma produtiva em saúde estreitou-se, e a tal ponto, que aqui não se deu conta de produzir aventais, máscaras e desinfetantes, como se fôssemos um pequeno povo habitando, uma ilhota perdida no oceano.
Mais ainda, percebemos que a saúde dos brasileiros, essa saúde pública e coletiva, essa organização do Estado e, em contrafacção, a demanda popular em saúde, essa dos bairros afastados e das periferias superlotadas vai mal das pernas. Nossas políticas públicas de saúde afundaram-se ou foram antes naufragadas; direitos sociais e econômicos foram reduzidos, o gasto público com a saúde e a educação foi congelado e pelo tempo de uma geração. Todavia, os teólogos do credo neoliberal atuam dia e noite, sem descanso nem trégua, no propósito de mais ainda mercantilizar a vida e de tudo aquilo que se move na face da terra. Convenceram-nos que ter um hospital privado é superior a ter um público; que vender consulta, com doutores de jalecos da moda e anúncios no metrô, é melhor que ter médicos em unidades básicas de saúde; os médicos, antes em sua formação e em sua prática, privatizaram-se, sendo hoje vistosa, mais do quem nunca, a medicina empresarial; não ter serviço público tornou-se modo de dinamizar o empreendedorismo de quantos tenham se lançado à rendosa tarefa de atender aos que se encontram em situação de pobreza ou aos carentes de sempre; laboratórios de saúde pública são bons quando pertencem a um estrangeiro, assim nos dizem; e sabidamente não necessitamos de pesquisa científica nem de vanguarda tecnológica. Há quem tenha se inclinado a isso, e não por acaso o governo federal promove o descrédito e insiste no fechamento de agências estratégias como o CNPq e a CAPES.
Assim, parece natural que o aparelho de Raio-X, a máquina de ressonância ou o tomógrafo tenham marca estrangeira, como é naturalmente estrangeiro o fabricante do leito do hospital e logo a seguir uma série infindável de itens hospitalares ou de uso sanitário em geral. Pois é também fato que nas últimas décadas plataformas tecnológicas em produção de fármacos e de material hospitalar saíram do país, vindo a se concentrar em territórios distantes e mais convenientes aos interesses transnacionais, num movimento de reestruturação produtiva que visou ao aumento dos ganhos[2].
Nos desnacionalizaram e nos desmobilizaram. E agora, diante da emergência, nos tornamos pouco eficazes em termos de respostas operacionais porque isso exige vontade política e Estado, dois ingredientes atualmente em falta no mercado. Diante do Covid aparecemos como um país frágil porque antes, e de modo conveniente, fomos o maior país do mundo a fragilizar propositadamente todas as suas estruturas sociais básicas. Não é por acaso que sequer cogita-se em colocar sob gestão pública equipamentos privados de saúde, incluindo laboratórios de análises clínicas ou leitos de UTI, nem a vasta rede de unidades básicas de saúde foi organizada para as novas necessidades[3]. Isso só poderia acontecer se houvesse sentimento de solidariedade coletiva e empatia social antes de mais nada. Mas não há.
Dizendo de outro modo, o Covid-19 pôs a nu nossa brutal, avassaladora dependência estratégica em saúde. Essa dependência sanitária naturalmente dialoga com outras situações de dependência que se instalaram no país depois de 1º de janeiro de 2019. A principal delas reside no Ministério das Relações Exteriores, mas não apenas nele.
Rompendo a trajetória centenária na condução dos negócios exteriores, de sólido reconhecimento da atuação brasileira desde o Império e consolidada ao longo da República, o novo ministro “desenvolve uma política externa completamente estranha a quaisquer das linhagens da longa tradição diplomática brasileira”[4].
O Chanceler brasileiro, um dos mais vistosos representantes da “ala ideológica” do novo governo, colocou a política externa do Brasil em alinhamento automático ao do governo de Donald Trump. Passamos a funcionar como “linha auxiliar” da Casa Branca. Em conjunto, a nova política do Itamaraty adotou e expressa a perspectiva ultra-neoliberal do ministro da Economia: defesa do capital financeiro e das grandes corporações internacionais, proposta da privatização ‘de quase tudo’, principalmente as grandes empresas nacionais de capital aberto (tipo a Embraer, a Petrobrás e a Eletrobrás), com redução do tamanho do Estado (quando se trata dos pobres), redução do financiamento das universidades públicas, tudo isso cercado por beligerância gratuita a imaginários inimigos dos tempos pretéritos. Como escrevi em livro recentemente editado, “ao invés de buscar independência no plano internacional e fortalecer pactos regionais e acordos multilaterais, o Brasil, num movimento de recuperar a geopolítica dos blocos militares, típica do início da guerra fria nos  anos 1950, passa[ria] a se alinhar, vocacionalmente, com uma das potências desses blocos. No caso, em meio a tantos pensamentos antigos terra plana, previsões com base em horóscopos, preferência por interpretações teológicas da realidade, entre outros recuperou­se a divisão do planeta em dois lados ideologicamente opostos. Não há mais blocos, toda a gente sabe, mas isto tornou­se irrelevante”.[5]
Trago essas questões à baila pelo fato incoercível - e, no entanto, razoavelmente despercebido -, que uma nação que não tem política externa independente e soberana não conseguirá manter, no plano interno, políticas que visem a beneficiar o povo e a amparar amplamente a sua sociedade, nem tampouco resguardar princípios éticos inegociáveis de justiça, liberdade, autonomia e direito à vida. A afirmação pública do novo ministro da saúde, Nelson Teich, de que pessoas idosas são elegíveis para a morte, na disputa por meios hospitalares de sobrevivência, nos força a perguntar se já não atingimos as fronteiras do Campo.
A destruição do rico acervo material e imaterial do Itamaraty, construído ao longo de décadas, é o retrato da destruição das instituições do Estado e da sociedade no Brasil. Em nome de uma suposta defesa dos valores comuns “ocidentais e cristãos”, no altar do deus mercado e do seu primo mais próximo, o deus da guerra, imolam-se vidas e o futuro das novas gerações.
Como disse o deputado Eduardo Cunha, no encerramento da sessão da Câmara dos Deputados que acolheu o pedido de impeachment de Dilma Roussef, que Deus tenha misericórdia do Brasil. Mais profético, impossível.



[1] Professor associado sênior, Departamento de Política, Gestão e Saúde, Faculdade de Saúde Pública/USP
[2] Sobre equipamentos médico-odontológicos e hospitalares veja, entre outros, Manfredini MA et al. Tendências da indústria de equipamentos odontológicos no Brasil entre 1990 e 2002: notas prévias. Ciênc. saúde coletiva, Mar 2006, vol.11, no.1, p.169-177; sobre fármacos, confira Bonfim JRFA et ali. O que se entende por fármacos novos. Boletim do Instituto de Saúde, 42, 2007, 5-7.
[3] Como apontaram as professoras Marília Louvison, Laura Feurwerker e Deisy Ventura, da Faculdade de Saúde Pública/USP, na web-conferência realizada em 13 de abril de 2020. Ver em https://www.youtube.com/watch?v=l9yqHZh1YT8
[5] Percursos irregulares. 2.ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2019, p. 243n.

3 comentários:

gustavofornazari@hotmail.com disse...

Um artigo gigante, bem ao estilo do talento, cultura e inteligência de Carlos "Baxo" Botazzo.

Unknown disse...

Muito claro, contundente e didático.
De fato, os deuses, da guerra e do mercado ja se impõem, com seus agentes, contra o Brasil que se faz minúsculo. Sendo assim, como desde os tempos antigos, para que as colonias prosperem há que acabar com o império.

Unknown disse...

Perfeito, na mosca!!!!!