"...hoje nossa
plataforma produtiva em saúde estreitou-se, e a tal ponto, que aqui não se deu
conta de produzir aventais, máscaras e desinfetantes, como se fôssemos um pequeno
povo habitando uma ilhota perdida no oceano."
A epidemia
de Covid-19 nos lançou numa espécie de vórtice metafísico. Primeiro, porque
aqui só pode ser epidemia e no mundo, dada sua extensão, pandemia. Cidade e
Mundo ou Urbi et Orbi. Vivemos, com o Corona vírus, momentos de intensa
contemporaneidade global e nunca, nos últimos tempos, salvo pelas estripulias
da Primeira Família, tÍnhamos tido tão caudalosa imersão nos assuntos do
planeta. Que desta vez foi provocada por um ser microscópico, que Ser nem se pode
dizer que seja, embora tenha tomado as proporções de um Ser heideggeriano: um
ser-aí, um ser-em-si, um ser-no-mundo.
E
constrange que ao lado do isolamento social e das vicissitudes que tal prática
acarreta a tantos que tenham que se isolar, ainda tenhamos que vivenciar o medo
aumentado pelo cálculo que, finalmente, poderia nos informar coisas triviais
como ter ou não ter testes suficientes e em massa; exames laboratoriais com
resultado em tempo quase real, incluindo o dos já mortos; laboratórios públicos
equipados e com técnicos suficientes para processar análises; profissionais
treinados e em número adequado para proceder ao acolhimento dos acometidos;
unidades de saúde em número suficiente para atender aos necessitados de cuidados
médios e finalmente terapia intensiva para os infelizes que venham delas
necessitar. Mais, trata-se de saber se terão os pacientes e, antes deles, os
profissionais, equipamentos de proteção individual e, em quantidade suficiente,
dispositivos auxiliares para respiração, e leitos hospitalares para arcar com as
estimativas futuras.
Sabemos
neste momento que o Brasil, em termos de saúde pública, está fragilizado, isto
é, foi estruturalmente comprometido e então é socialmente vulnerável, porque
nos falta tudo aquilo que foi listado acima e um pouco mais. Nos faltam leitos
de UTI, carecemos de testes e nossos laboratórios públicos mal cumprem a função
burocrática de existir. De repente, nos percebemos na dependência, na terrível
dependência de recursos tecnológicos e insumos externos, em meio à excruciante
constatação de que hoje nossa plataforma produtiva em saúde estreitou-se, e a
tal ponto, que aqui não se deu conta de produzir aventais, máscaras e
desinfetantes, como se fôssemos um pequeno povo habitando, uma ilhota perdida
no oceano.
Mais
ainda, percebemos que a saúde dos brasileiros, essa saúde pública e coletiva,
essa organização do Estado e, em contrafacção, a demanda popular em saúde, essa
dos bairros afastados e das periferias superlotadas vai mal das pernas. Nossas
políticas públicas de saúde afundaram-se ou foram antes naufragadas; direitos
sociais e econômicos foram reduzidos, o gasto público com a saúde e a educação
foi congelado e pelo tempo de uma geração. Todavia, os teólogos do credo
neoliberal atuam dia e noite, sem descanso nem trégua, no propósito de mais
ainda mercantilizar a vida e de tudo aquilo que se move na face da terra. Convenceram-nos
que ter um hospital privado é superior a ter um público; que vender consulta,
com doutores de jalecos da moda e anúncios no metrô, é melhor que ter médicos
em unidades básicas de saúde; os médicos, antes em sua formação e em sua
prática, privatizaram-se, sendo hoje vistosa, mais do quem nunca, a medicina empresarial;
não ter serviço público tornou-se modo de dinamizar o empreendedorismo de
quantos tenham se lançado à rendosa tarefa de atender aos que se encontram em
situação de pobreza ou aos carentes de sempre; laboratórios de saúde pública
são bons quando pertencem a um estrangeiro, assim nos dizem; e sabidamente não
necessitamos de pesquisa científica nem de vanguarda tecnológica. Há quem tenha
se inclinado a isso, e não por acaso o governo federal promove o descrédito e
insiste no fechamento de agências estratégias como o CNPq e a CAPES.
Assim, parece
natural que o aparelho de Raio-X, a máquina de ressonância ou o tomógrafo tenham
marca estrangeira, como é naturalmente estrangeiro o fabricante do leito do
hospital e logo a seguir uma série infindável de itens hospitalares ou de uso
sanitário em geral. Pois é também fato que nas últimas décadas plataformas
tecnológicas em produção de fármacos e de material hospitalar saíram do país,
vindo a se concentrar em territórios distantes e mais convenientes aos
interesses transnacionais, num movimento de reestruturação produtiva que visou ao
aumento dos ganhos[2].
Nos
desnacionalizaram e nos desmobilizaram. E agora, diante da emergência, nos
tornamos pouco eficazes em termos de respostas operacionais porque isso exige vontade
política e Estado, dois ingredientes atualmente em falta no mercado. Diante do
Covid aparecemos como um país frágil porque antes, e de modo conveniente, fomos
o maior país do mundo a fragilizar propositadamente todas as suas estruturas
sociais básicas. Não é por acaso que sequer cogita-se em colocar sob gestão
pública equipamentos privados de saúde, incluindo laboratórios de análises
clínicas ou leitos de UTI, nem a vasta rede de unidades básicas de saúde foi organizada
para as novas necessidades[3].
Isso só poderia acontecer se houvesse sentimento de solidariedade coletiva e
empatia social antes de mais nada. Mas não há.
Dizendo de
outro modo, o Covid-19 pôs a nu nossa brutal, avassaladora dependência
estratégica em saúde. Essa dependência sanitária naturalmente dialoga
com outras situações de dependência que se instalaram no país depois de 1º de
janeiro de 2019. A principal delas reside no Ministério das Relações Exteriores,
mas não apenas nele.
Rompendo a
trajetória centenária na condução dos negócios exteriores, de sólido reconhecimento
da atuação brasileira desde o Império e consolidada ao longo da República, o
novo ministro “desenvolve uma política externa completamente estranha a quaisquer das
linhagens da longa tradição diplomática brasileira”[4].
O Chanceler
brasileiro, um dos mais vistosos representantes da “ala ideológica” do novo
governo, colocou a política externa do Brasil em alinhamento automático ao do governo
de Donald Trump. Passamos a funcionar como “linha auxiliar” da Casa Branca. Em
conjunto, a nova política do Itamaraty adotou e expressa a perspectiva ultra-neoliberal
do ministro da Economia: defesa do capital financeiro e das grandes corporações
internacionais, proposta da privatização ‘de quase tudo’, principalmente as
grandes empresas nacionais de capital aberto (tipo a Embraer, a Petrobrás e a
Eletrobrás), com redução do tamanho do Estado (quando se trata dos pobres), redução
do financiamento das universidades públicas, tudo isso cercado por beligerância
gratuita a imaginários inimigos dos tempos pretéritos. Como escrevi em livro
recentemente editado, “ao invés de buscar independência no plano internacional e
fortalecer pactos regionais e acordos multilaterais, o Brasil, num movimento de
recuperar a geopolítica dos blocos militares, típica do início da guerra fria nos anos 1950, passa[ria] a se alinhar, vocacionalmente, com uma das potências desses
blocos. No caso,
em meio a tantos pensamentos antigos — terra
plana, previsões com base em horóscopos, preferência por interpretações teológicas da realidade, entre outros — recuperouse a divisão do planeta em dois
lados ideologicamente opostos. Não há mais
blocos, toda a gente sabe, mas isto tornouse irrelevante”.[5]
Trago
essas questões à baila pelo fato incoercível - e, no entanto, razoavelmente
despercebido -, que uma nação que não tem política externa independente e
soberana não conseguirá manter, no plano interno, políticas que visem a
beneficiar o povo e a amparar amplamente a sua sociedade, nem tampouco
resguardar princípios éticos inegociáveis de justiça, liberdade, autonomia e
direito à vida. A afirmação pública do novo ministro da saúde, Nelson Teich, de
que pessoas idosas são elegíveis para a morte, na disputa por meios hospitalares
de sobrevivência, nos força a perguntar se já não atingimos as fronteiras do
Campo.
A
destruição do rico acervo material e imaterial do Itamaraty, construído ao
longo de décadas, é o retrato da destruição das instituições do Estado e da
sociedade no Brasil. Em nome de uma suposta defesa dos valores comuns
“ocidentais e cristãos”, no altar do deus mercado e do seu primo mais próximo,
o deus da guerra, imolam-se vidas e o futuro das novas gerações.
Como disse
o deputado Eduardo Cunha, no encerramento da sessão da Câmara dos Deputados que
acolheu o pedido de impeachment de Dilma Roussef, que Deus tenha misericórdia
do Brasil. Mais profético, impossível.
[1] Professor
associado sênior, Departamento de Política, Gestão e Saúde, Faculdade de Saúde
Pública/USP
[2] Sobre
equipamentos médico-odontológicos e hospitalares veja, entre outros, Manfredini
MA et al. Tendências da indústria de equipamentos
odontológicos no Brasil entre 1990 e 2002: notas prévias. Ciênc. saúde
coletiva, Mar 2006, vol.11, no.1, p.169-177; sobre
fármacos, confira Bonfim JRFA et ali. O que se entende por fármacos novos.
Boletim do Instituto de Saúde, 42, 2007, 5-7.
[3]
Como apontaram as professoras Marília Louvison, Laura Feurwerker e Deisy
Ventura, da Faculdade de Saúde Pública/USP, na web-conferência realizada em 13
de abril de 2020. Ver em https://www.youtube.com/watch?v=l9yqHZh1YT8
[4] Confira em https://diplomatique.org.br/anatomia-de-um-desgoverno-cronica-de-uma-crise-anunciada/ acesso em 16/4/20)
[5] Percursos
irregulares. 2.ed. São Paulo: Editora Hucitec, 2019, p. 243n.
3 comentários:
Um artigo gigante, bem ao estilo do talento, cultura e inteligência de Carlos "Baxo" Botazzo.
Muito claro, contundente e didático.
De fato, os deuses, da guerra e do mercado ja se impõem, com seus agentes, contra o Brasil que se faz minúsculo. Sendo assim, como desde os tempos antigos, para que as colonias prosperem há que acabar com o império.
Perfeito, na mosca!!!!!
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