AGENDA CULTURAL

13.8.25

A xícara trincada - Pedro Trajano

Quatro e pouco. Acordo antes da cidade.

A luz da cozinha acende, o cursor do notebook pisca,

o Word em branco pede versos.

Às vezes, a pia ainda carrega lembranças do jantar de ontem:

três pratos, alguns talheres — e um silêncio que respinga.


Às dez para cinco, colho couve e ora-pro-nóbis no quintal.

Faço um suco verde e entrego um copo à minha esposa.

Ela sai pra caminhar.

Eu fico — e acordo nossa filha ao som de K-pop.


O café da manhã segue um ritual: crepioca, ovos, frutas.

A liturgia do dia toca de um aplicativo.

Enquanto comemos, falamos de contas, de planos,

da vida que caminha — e também rimos.


Levo as duas: uma para aprender, outra para ensinar.

Escolas diferentes, mas o mesmo cheiro de giz.


Volto. Molho a horta. Reviso a agenda.

Olho prazos, penso nos clientes.

Se der tempo, escrevo.

A poesia ainda não me paga — mas sustenta a alma.

Às oito, saio de casa para conquistar o meu dia.


Minha rotina não é prisão — é afeto encadeado.


Entre um afazer e outro, penso:

a vida, às vezes, é como aquela xícara trincada no armário.

A que ninguém escolhe pra visita.

Mas é nela que o café parece estar mais quente.


Nas redes sociais, o mundo vive em festa:

quase uma orgia de dopamina.

Gente em praias, brindando ao pôr do sol.

Carros caros. Filhos prodígios. Casamentos filtrados.


Mas isso é só o que se mostra.

A maioria vive como a gente:

entre o despertador e o dia lá fora,

entre boletos e pequenos milagres.

Só que isso — quase ninguém curte.


A armadilha é tomar o recorte pela realidade inteira.

E esquecer que o extraordinário — quase sempre — se disfarça no comum.


A vida simples não se exibe.

Ela sussurra.

Talvez por isso não se poste:

porque o essencial não se posta — vive.


*PEDRO TRAJANO - poeta de Penápolis-SP, 
membro da Academia Penapole
nse de Letras

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