AGENDA CULTURAL

9.9.25

MEMÓRIA: Quem não é visto, não é lembrado - José Cícero

 

Em maio de 2025, eu e a repórter Bianca Muniz estivemos no Museu da Imigração, em Santa Bárbara D`Oeste, cidade do interior de São Paulo, a 140 km da capital paulista. Fomos à região apurar informações para uma reportagem sobre a exaltação da migração vinda dos EUA e o apagamento da história da população negra local. A matéria integra o Projeto Escravizadores e foi publicada em nosso site recentemente. 

Logo na entrada do museu, chamava atenção o destaque dado à colonização americana na região. Tudo documentado em textos e imagens: a chegada dos colonizadores, as primeiras igrejas, as atividades femininas, o impacto dos americanos no sistema educacional brasileiro, a alimentação, os utensílios domésticos utilizados à época. Havia fotos dos trajes, famílias, festas, da cidade, ruas, prédios públicos e até dos confederados perfilados. Mas, entre tantos registros, nenhuma menção sobre à história dos negros. 

Ao circularmos pela cidade, encontramos símbolos, memórias e ruas que levam sobrenomes de famílias americanas. Imagens cotidianas que reforçam a presença  — e a suposta importância — dos colonizadores, mas silenciam sobre a participação negra na construção da cidade. 

Em julho, fui a Americana. Além dos mesmos elementos presentes na vizinha Santa Bárbara D`Oeste, o que me chamou a atenção foi a ausência de negros circulando pela cidade. Essa impressão poderia ser explicada pelo pouco tempo em que estive ali, mas a sensação ganhou contornos mais profundos quando conversei com Silvia Motta, mulher negra, ativista  e moradora da região há décadas. Em uma conversa despretensiosa, ela sintetizou a relação da população negra com o município: “Em Americana, se você for nos bairros periféricos, vai ver a nossa população ainda lutando pela sobrevivência. Lá está a cultura afro, lá está a capoeira, lá está o Rap. As periferias são os novos quilombos. Mas nós podemos estar em qualquer lugar”. 

O encontro aconteceu no Centro de Memória Afroamericanese “Dinyzio de Campos”. Mais que um espaço dedicado à preservação da história da população negra —  em uma região que foi a última do país a abolir o regime escravocrata, mas que ainda perpetuou com a escravidão por decádas —, o centro é uma resposta direta à tentativa de apagamento da existência dos negros escravizados e, posteriomente, libertos.

Hoje, há um esforço conjunto da sociedade civil e da academia em resgatar as histórias de negros que contribuiram para a construção da região. Foi nesse movimento que pesquisadores encontraram uma foto datada por volta de 1918, feita próxima à estação ferroviária, no centro de Americana. A imagem mostra Dionyzio de Campos — que dá nome ao Centro Cultural —, encostado em um poste,  carregando uma cesta no braço esquerdo, descalço. Mesmo 30 anos após a abolição, sua postura e aparência remetem à condição de pessoas escravizadas.

A fotografia despertou ainda mais o interesse pela memória silenciada. Como as histórias eram contadas — e raramente registradas — pelos colonizadores, pouco se sabe sobre a vida de Dionyzio. 

Um documento exposto no Centro de Memória traz um breve registro: segundo o texto, ele teria nascido na África por volta de 1848, onde foi escravizado e  trocado por uma caneca de ferro. Chegou ao Brasil com pouco mais de sete anos e foi comprado por um fazendeiro. 

Quem observa sua única fotografia com distração, talvez não perceba: Dionyzio não tinha o braço direito. De acordo com relato do doador da foto, Pedro Bertine – o autor permanece desconhecido –, ele perdeu o membro após cair de uma árvore. A cesta que carrega no braço esquerdo servia para transportar carretéis de linha, retalhos e pequenos objetos para o senhor a quem continuava prestando serviços, sem remuneração, mesmo após a Lei Áurea. 

Esse registro fotográfico é um documento incontornável: desmonta o discurso de que negros não foram escravizados durante a imigração e a colonização em Americana – argumento ainda defendido por descendentes dos escravizadores. Mais que uma prova histórica, a imagem fortalece a resistência da população negra local contra o apagamento da sua existência, sistematicamente negada por uma história que insiste em privilegiar apenas o recorte conveniente a quem dominava e controlava a narrativa. 

Um abraço,

José Cícero
Editor de fotos e vídeos

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