O grito dos românticos
Hélio Consolaro*
Vou-me embora pra Pasárgada foi o poema de mais longa gestação em toda a obra de Manuel Bandeira, segundo confissão do próprio poeta. Enquanto esperava tal poema, escreveu livros, ou seja, outros poemas.
Há muitos sítios, bares, refúgios com o nome de Pasárgada pelo Brasil. Que significa tal nome, onde o autor foi buscá-lo? Sei que tais perguntas são básicas, qualquer estudante de Literatura já as respondeu, mas escrevo para leitor de jornal, que não é especializado, então, toda explicação não é demais.
Esse nome de Pasárgada foi visto por Manuel Bandeira quando tinha 16 anos num livro de autor grego, mas perdeu a fonte, esqueceu-se dela. Um amigo lhe disse que Estrabão e Arriano falaram na famosa cidade fundada por Ciro. Pasárgada, então, significaria campo de batalhas dos persas ou tesouro dos persas.
Não importa bem a origem. A fonética do nome, a incerteza da origem criou no imaginário do poeta bem jovem, Manuel Bandeira, que já vivia perseguido por uma tuberculose, ser o lugar de seus sonhos, um país de delícias, onde não se tem a lógica do cotidiano:
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
Vinte anos depois, num momento de depressão e desanimado com a doença persistente, eis que surge novamente o nome do lugar imaginário, surgiu o verso como se fosse um grito de libertação: Vou me embora pra Pasárgada, mas ficou nisso.
Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio com a vida besta, surgiu o mesmo desabafo de evasão. E o poema saiu sem esforço, veio pronto.
A evasão é espacial, porque ele quer ser transladado para Pasárgada; e temporal, volta ao passado, porque lá é amigo do rei, quando as regras comportamentais não eram bem definidas. Assim como Canção do exílio, de Gonçalves Dias, tem o lá (Brasil, o ideal) e o cá (Portugal, o real), Manuel Bandeira joga também com esses dois advérbios: cá (vida besta) e lá (vida cheia de aventura).
Os moralistas não gostaram, porque em Pasárgada tinha alcalóides (drogas). Tem um processo seguro / De impedir a concepção. Era um lugar do jeito que o diabo gosta, e o Deus (dos moralistas) não entra.
Era o resumo de sua vida: a procura de um mundo ideal, onde só existia o prazer. Embora Manuel Bandeira seja modernista, em Vou me embora pra Pasárgada se revela romântico, buscando uma fuga, o escapismo, idealizando a realidade, confessional como toda a sua obra.
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
Aliás, ele sempre viveu com a doença dos antigos românticos, a tuberculose, levando uma vida pela metade, sem beijar mulheres, e chegou aos 82 anos de vida (1886-1968). E fez muitos poemas para a cruz de sua vida: a doença.
Se Gonçalves Dias é conhecido pela Canção do exílio, Manuel Bandeira, por Vou me embora pra Pasárgada. E ele tinha consciência disso: Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e não como forma imperfeita neste mundo de aparências, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim a minha Pasárgada.
Entre nós, há muitos procurando sua Pasárgada; a exemplo de Manuel Bandeira, praticando suas evasões, algumas aceitas, outras condenadas, pela sociedade. E esse é o papel da arte: imitar a vida, buscar a catarse, registrar o grito.
Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras, da UBE e da Cia. dos Blogueiros.
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamara mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei -
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
O poema na voz de Manuel Bandeira
Poema musicado por Paulo Diniz
Adaptação de Gilberto Gil - canta Olívia Hime
Depoimento de Manuel Bandeira
Depoimento de Manuel Bandeira
Vou-me embora pra Pasárgada foi o poema de mais longa gestação em toda a minha obra! Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada quando tinha os meus 16 anos e foi num autor grego. Estava certo de ter sido em Senofonte, mas já vasculhei duas ou três vezes a Ciropédia e não encontrei a passagem. O douto Frei Damião Berge informou-me que Estrabão e Arriano, autores que nunca li, falam na famosa cidade fundada por Ciro, o antigo, no local preciso em que vencera a Astíages. Ficava a sueste de Persépolis. Esse nome de Pasárgada, que significa campos dos persas ou tesouro dos persas, suscitou na minha imaginação uma paisagem fabulosa, um país de delícias (...). Mais de vinte anos depois, quando eu morava só na minha casa da Rua do Curvelo, num momento de fundo desânimo, de mais aguda sensação de tudo o que eu não tinha feito na minha vida por motivo da doença, saltou-me de súbito do subconsciente esse grito estapafúrdio: “Vou-me embora pra Pasárgada!” Senti na redondilha a primeira célula de um poema, e tentei realizá-lo, mas fracassei . Já nesse tempo eu não forçava a mão. Abandonei a idéia. Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o mesmo desabafo de evasão da vida besta. Desta vez o poema saiu sem esforço, como se já estivesse pronto dentro de mim. Gosto desse poema porque vejo nele, em escorço (em resumo), toda a minha vida; e também porque parece que nele coube transmitir a tantas outras pessoas a visão e promessa de minha adolescência - essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar. Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não fiz nenhuma casa, mas reconstruí, e não como forma imperfeita neste mundo de aparências, uma cidade ilustre, que hoje não é mais a Pasárgada de Ciro, e sim a minha Pasárgada
(Manuel Bandeira, Poesia completa e prosa, Editora Aguilar)
Biografia de Manuel Bandeira
Um comentário:
Um grande gênio e excelente escritor.
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