AGENDA CULTURAL

9.8.11

Revista da Cultura entrevista a psicanalista Lidia Rosenberg Aratangy




Palavras, palavras e mais palavras. A vida da psicanalista Lidia Rosenberg Aratangy gira em torno de palavras, como ela mesma define. Em seu consultório, nos livros que escreveu – já são mais de 20 –, e em sua paixão pela leitura, devora de dois a três livros por semana. “Para espairecer, faço bordados e crochê, que são atividades em que não preciso usar palavras”, revela, mostrando as gavetas com as linhas, cuidadosamente separadas por tons. O gosto pela leitura é hereditário. Lidia cresceu em um “precioso caldo de cultura”. A casa de seus pais era frequentada por intelectuais como Procópio Ferreira, Pedro Bloch e o casal Júlio Gouveia e Tatiana Belinky.

Além de ter herdado o amor pela leitura dos pais, Lidia teve a sorte de ganhar seu primeiro livro das mãos de ninguém menos que Monteiro Lobato. Isso mesmo, ela conta que no primeiro dia de férias do ano em que aprendeu a ler, seus pais decidiram dar início a um ritual: ir a uma livraria escolher um livro. E o début deste ritual foi inesquecível! Lá estava Lidia percorrendo as prateleiras de publicações infantis, folheando uma e outra, quando repara, de longe, um cidadão de bigode ralo e sobrancelhas cerradas a observando. De repente, ele se aproxima e pergunta o que ela procura. “Ele pega um exemplar na prateleira e me diz que deveria conhecer aquele, porque o livro falava de mim. Peguei, folheei, achei interessante, mas queria exercer meu direito de escolha. Agradeci e continuei a pesquisa”, relata Lidia. No fim, ela resolveu aceitar a indicação. Quando chegou ao caixa para pagar, a surpresa: o livro Reinações de Narizinho tinha sido deixado de presente pelo tal senhor. E com uma dedicatória: “A minha Narizinho de tranças (e eu não sabia que você usava tranças...), como muito amor, Monteiro Lobato”. Esta história não termina aí. Tempos depois, Lidia estreou como atriz, sendo a primeira Narizinho da televisão brasileira na série Sítio do Pica Pau Amarelo. Tudo isso Lidia Aratangy contou durante uma conversa sobre seu mais recente livro, Para entender adolescentes na era digital, na casa onde mora há 40 anos, em São Paulo.

Queria começar fazendo uma pergunta que está logo no início de seu livro: os adolescentes de hoje são diferentes de nossos avós ou só mudam os recursos tecnológicos? Eles são diferentes. Afinal, o meio é a mensagem e o meio faz com que sejam diferentes. São mais informados, porém, mais dependentes dos adultos. É um paradoxo, mas eles são. Por exemplo, se você soltar um adolescente de 16 anos no Centro de São Paulo e disser para ele ir para Interlagos, ele vai ficar perdido. Qualquer adolescente da geração anterior andava pela cidade com a maior competência. Os jovens de hoje precisam ser levados, buscados, trazidos.  Eles navegam pela internet, mas não conhecem sua cidade.

Os pais contemporâneos, com seus 35, 40 anos, parecem ter a mesma dificuldade de seus pais e avós para entender e aceitar atitudes de seus filhos pré ou adolescentes, apesar de terem vivido em uma geração muito mais livre.  O mundo está girando rápido demais? O mundo sempre girou igual, só depende da distância da qual você está olhando. Se andar de trem, verá as árvores correndo. Se andar de avião, estará tudo parado lá embaixo. Por isso, cada capítulo do livro começa com algumas questões, para remeter o leitor a sua própria adolescência, para ele não ficar olhando com o nariz tão empinado para os adolescentes de hoje, para ver os pontos em comum e resgatar suas dificuldades, suas falhas.



Mas quando não existem consequências graves, tendemos a achar que sabíamos realmente o que estávamos fazendo, como todo bom adolescente.  O difícil é achar que nosso filho também sabe, apesar de o desafio ser justamente educá-lo para que saiba, não é? Isso, só que aquilo que a gente sabia não vale para o adolescente de hoje. Esse é um paradoxo da educação: você educa hoje, com a bagagem que recebeu ontem, para seus filhos enfrentarem o mundo amanhã. Sempre existe um atraso.

Os filhos acabam sendo reflexo dos pais. Assim, pais que passam o fim de semana na frente da TV ou na internet, não podem exigir algo diferente de seus rebentos, podem? E onde fica aquela máxima de que os pais sempre querem que seus filhos sejam melhores do que eles são ou foram? Os filhos são um reflexo crítico daquilo que estão vendo nos pais e, por isso, com certa honestidade, até dá para serem diferentes. É assim que o mundo vai para a frente.  Os adolescentes são muito críticos em relação aos pais. Na verdade, os pais que fazem um discurso e têm uma atitude nitidamente oposta ao próprio discurso são flagrados pelos filhos de maneira bastante aguda. Os filhos se envergonham muito dos pais que, por exemplo, param em fila dupla na porta da escola e ficam buzinando.

Atualmente é bastante comum namoros começarem pela internet, conhecendo o amigo do amigo no Facebook. É mais perigoso esse namoro virtual do que os namoros que começavam nos bailes, há 30, 40 anos? Não necessariamente. Existe uma máxima que os pais dizem para os filhos há inúmeras gerações que é: não fale com estranhos, tome cuidado. E ela vale até hoje. Quando na rede social, você fala em amigos dos amigos, já é uma referência. Assim, acho que não tem diferença de risco significativa o namoro começar pela balada ou pela internet. O que acontece depois é que é perigoso. Quando esse relacionamento se prolonga, se acentua e se intensifica longe de todos os outros referenciais dos jovens. Não falo só da família, mas também dos amigos, que são referência muito importante. Namoros escondidos da família e dos amigos são preocupantes.

Vamos falar um pouco sobre drogas? O que achou da Marcha da Maconha ocorrida em São Paulo?A Marcha da Maconha é como a Marcha do Orgulho Gay, não se pode comparar com outra coisa que não com desfile de bloco de Carnaval. Acho que as liberdades são realmente importantes e têm de ser respeitadas, mas talvez não seja esse o caminho mais importante para se fazer valer de fato a liberdade. Mas, também, nem por isso, deveriam ser proibidas.

A senhora é a favor da descriminalização da maconha? Sim, mas não achando que com isso vamos diminuir o uso da maconha ou que ela não faz mal. Acho que ela tem efeitos nefastos. Mas vamos diminuir a violência ligada à maconha. Assim, o objetivo não é absolutamente fazer a prevenção do uso, ninguém tem essa ilusão, mas diminuir a violência e o submundo ligado a ela. E isso já faz a diferença, lembrando que o traficante tem a maconha em um bolso e a cocaína em outro, e aí já entramos em outro patamar.

Patamar no qual a maconha seria porta de entrada para outras drogas? A maconha é uma droga leve comparada à cocaína, ao crack... Não acho que seja em si uma porta de entrada para outras drogas. Ela acaba sendo, pois as outras drogas estão nas mesmas mãos da maconha. Se a pessoa fumar a maconha que plantou no quintal, não acredito que passará necessariamente para a cocaína. Agora, também acho que a maconha tem mais relação com o tipo de vida que o usuário tem do que com o efeito direto da droga. O sentido dessa experiência em um garoto com uma vida plena de interesses, que tem amigos, pratica esportes, vai à escola, lê, é muito diferente do que em um ser apático, desligado de amigos, sem objetivos, para quem a maconha de fato acaba adquirindo uma importância muito grande. Mas, tal como as coisas estão, mesmo para este cara, para quem a maconha é somente uma experiência periférica a mais, é preciso lembrá-lo de que está contribuindo com o crime, o dinheiro dele está indo para as mãos de traficantes e, assim, vai contribuir para alimentar a violência.

Informar sobre a violência que a droga gera é a melhor postura que os pais podem ter quando descobrem que o filho está fumando maconha? O filho precisa saber o que está alimentando com o uso da droga. Os jovens, atualmente, são extremamente sensíveis a este tipo de mensagem. Dizer que a droga faz mal é bobagem, porque, realmente, o adolescente se acha onipotente e imune a tudo. Mas a preocupação social do jovem é grande, ele não é alienado, como mostram várias pesquisas. Este é um apelo que tem ressonância.

E os pais que fumam, podem fumar com os filhos? Que fumam o quê? Tanto faz, né?

Não sei. Tomar um copo de vinho com o filho pode? Fico pensando também naquela afirmação, defendida inclusive pela senhora, de que pai não é amigo, pai é pai. Fumar e beber junto não é mais coisa de amigo? Realmente, pai não é amigo, pois, embora haja alguns pontos de convergência entre o papel do pai e o do amigo, há mais diferenças do que semelhanças. Tem aí, sem dúvida, uma hierarquia, senão de poder, de responsabilidade. Você disse pais que fumam e eu nem ia perguntar se maconha ou cigarro, porque o efeito é o mesmo. O vinho é um pouco diferente. Com a bebida também vale a questão do contexto e do significado que é dado para aquilo. Uma taça de vinho tomada na refeição, com a família, enriquecendo aquele momento é muito diferente daquela dose de uísque que o pai toma quando chega do trabalho estressado. Os humanos são seres simbólicos.



Queria falar um pouco sobre a erotização da infância, assunto que também é muito tratado em seu livro. Estamos voltando para o século 16, quando as crianças eram vistas literalmente como adultos pequenos? Acho que estamos vivendo algo parecido com o século 16, sim. Atualmente, é meio exagerado  a linguagem ser partilhada, adultos e crianças assistirem aos mesmos programas e expostos ao mesmo vocabulário. É a idealização da adolescência. Agora, todo mundo quer ser adolescente e esta fase deixou de ser vista como uma etapa do desenvolvimento e passou a ser uma ideologia. Você vê gente de 90 anos vestindo jeans e camiseta. O adulto quer ser adolescente e a criança, também. Não é só a barriga lisa, a pele sem rugas, o ânimo e a disposição, mas a vida adolescente, os relacionamentos sem compromisso. É muito estranho esse fenômeno. E isso tudo é estereótipo, pois a adolescência não é isso. Adolescência é uma fase de confusão, de dúvidas, de inseguranças, tem tanta coisa ruim ali.

Sexo na adolescência é desaconselhável? Na minha casa tinha um critério muito claro: namoro e beijo na boca, só quando o pé parar de crescer. O que tem por trás disso é que a gente sabe do Piaget [Jean, cientista e psicólogo suíço] que o pensamento abstrato só se desenvolve na adolescência. E o pensamento abstrato é a matéria-prima para o código de ética. Até aí você pode ter comportamentos morais, porque aprendeu ou não quer levar bronca. Mas um código de ética internalizado, só quando o pensamento abstrato está dominado. O universo do sexo é o universo da ética por excelência, pois é o universo do respeito pelo outro, por si mesmo e até por aquilo que você tem em volta. Então, a intromissão da sexualidade antes da conquista do pensamento abstrato dá besteira. E o pé parar de crescer, significa o fim da adolescência.

Como foi Lidia Aratangy mãe (ela tem quatro filhos e nove netos)? O mais interessante é que hoje tenho o resgate, vendo o tipo de pais que meus filhos se tornaram. Isso realmente me tranquiliza. Vejo, pela diferença de educação que cada filho meu dá para seus filhos, que não passei um modelo rígido e sim a possibilidade de cada um se encontrar a partir de valores. Agora, uma coisa posso dizer com orgulho: meus filhos têm os valores que achava importante transmitir. Mas não os criei sozinha. Sem a participação constante e coerente do Paulo, com quem estou casada há quase 50 anos, eles não seriam o que são. Nem eu, aliás.

O que a senhora acha dos métodos da SupernannyTemo as consequências daqueles ensinamentos, pois ela está moldando comportamentos, e não educando pessoas. Ela representa e incentiva uma corrente que se está popularizando até entre alguns profissionais: uma revalorização da obediência. Acho preocupante, porque seres obedientes não são necessariamente cidadãos éticos, muitas vezes são apenas pessoas medrosas e submissas a autoridades, a matéria-prima de que se alimentam as ditaduras. Muitas iniquidades foram cometidas, na história da humanidade, em nome da “obediência devida”.

A mãe de hoje é mais insegura, já que lota sua casa com aparatos de segurança como redes de proteção e protetores de quina, de porta? As crianças estão preparadas para enfrentar os obstáculos do mundo, já que não têm nenhum dentro de casa? As trancas, as cercas, tudo isso sempre existiu. Não são as mães que estão mais inseguras, é o mundo que está. Mas obstáculos tem sempre. Esse assunto remete ao início desta nossa conversa, quando falamos que os adolescentes estão muito menos nas ruas do que as outras gerações. Mas não há dúvida de que existem muito mais perigos hoje em dia. O mundo não está pior, ainda não está bom, mas está melhor do que já foi. As mães estão mais inseguras, porque têm menos modelos válidos. Hoje as mães têm de ser as mães que são, e não como sua mãe e avós foram. Resgatam, sim, algumas coisas, mas as avós não ensinaram a lidar com a internet... 



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