AGENDA CULTURAL

10.8.11





Durante as décadas de 1940 a 1960, os brasileiros se acostumaram a ir ao cinema para rir das grandes sacadas do ator Zé Trindade,  da dupla Oscarito e Grande Otelo e de Ankito. Também torciam por casais formados por nomes como Anselmo Duarte e Eliana, e contra vilões interpretados por grandes atores como José Lewgoy. Aproveitavam também para acompanhar o lançamento de músicas cotadas para fazer grande sucesso no carnaval seguinte. Assim era a chanchada, gênero da sétima arte que se consagrou no Brasil e era realizado principalmente pela Atlântida Cinematográfica, histórico estúdio então sediado no Rio de Janeiro e que completa 70 anos neste mês de setembro. Ali, entre câmeras, claquetes, iluminação e dezenas de técnicos, diretores e atores, foram produzidos ao todo de 66 filmes no período de 1941 a 1962.

Bastava aparecer na tela o slogan “Atlântida apresenta”, acompanhado da imagem de vários chafarizes e de uma imensa estátua grega no alto de uma escadaria para que os espectadores já se preparassem para sofrer, rir e torcer.

“A Atlântida é montada em cima de um sistema de distribuição e de um cinema de mercado. Ela evoluiu em direção à comédia porque era o que público atingido desejava. Tirando O ébrio (esgotado), estrelado por Vicente Celestino – talvez o único melodrama de extremo sucesso no Brasil –, o público se distanciava desse gênero de filme, assim como de um cinema mais culto, como foi realizado depois pelos diretores do Cinema Novo”, avalia Jean-Claude Bernardet, renomado crítico, cineasta e professor aposentado de história do cinema brasileiro na Universidade de São Paulo (USP).


No início da década de 1940, o cinema brasileiro enfrentava um momento de recesso. A Cinédia havia alugado os estúdios para as filmagens deIt’s All True (esgotado), do cineasta norte-americano Orson Welles. A Brasil Vita Filmes, de Carmen Santos, ainda estava envolvida com a produção Inconfidência mineira, iniciada em 1936 e só concluída em1948. E a Sonofilmes havia paralisado as atividades após um incêndio em seus estúdios em novembro de 1940. Nesse cenário, a Atlântida foi fundada pelo produtor e cineasta Moacir Fenelon, pelo cineasta, compositor e ator José Carlos Burle e pelo irmão dele, Paulo Burle, com o apoio do conde Pereira Carneiro, proprietário do Jornal do Brasil.

A companhia começou realizando o cinejornal Atualidades Atlântida, documentários, como o IV Congresso Eucarístico Nacional de São Paulo, e o média-metragem Astros em desfile. O primeiro filme de ficção da Atlântida foi o melodrama Moleque Tião, de 1943, inspirado na trajetória do ator Grande Otelo. A trama mostra um jovem ator negro do interior do Rio de Janeiro, que se muda para a capital, onde sofre várias desilusões até ter a oportunidade de mostrar seu talento. Tornou-se um grande sucesso.

“O segundo filme não obteve o mesmo retorno financeiro, e aí adveio uma grande crise, pois, para o início da companhia, foram comprados equipamentos de segunda mão, além de que é muito alto o investimento em produção. Portanto, o terceiro filme, Tristezas não pagam dívidas, era fundamental para que a Atlântida seguisse ou não seu rumo. E foi o que marcou o início da chanchada e da parceria de maior sucesso do cinema nacional: Oscarito e Grande Otelo”, descreve Mônica Campo, professora de História da Cásper Líbero. Paralelamente, também foi fundamental para a consolidação da Atlântida a lei aprovada em1946, a qual estipulava a exibição de um filme nacional a cada quatro meses, assim como a entrada, como sócio da companhia, de Luiz Severiano Ribeiro, o proprietário de uma rede de cinema apontada como uma das maiores do país.

Para Jean-Claude Bernardet, o grande realizador da chanchada foi o diretor carioca Watson Macedo, falecido em 1981, responsável por filmes como a comédia que marcou a estreia dele, Não adianta chorar, de 1945, e clássicos como Este mundo é um pandeiro (1947), Carnaval no fogo(1949) e Aviso aos navegantes (1950, esgotado). “Ele desejava fazer dramas e desprezava a chanchada. E, portanto, se desvalorizava. Afinal, realizou um único melodrama, que fracassou: A sombra da outra, de 1950”, descreve.

Foi também de Watson Macedo uma das cenas mais emblemáticas e marcantes do gênero: no filme Carnaval no fogo, há uma paródia do famoso episódio do clássico teatral Romeu e Julieta, quando os protagonistas da película em questão estão no balcão de uma casa. Nesse caso, Grande Otelo interpreta Julieta, e Oscarito é o Romeu. Os dois discutem se escutam o cantar de um rouxinol ou de uma cotovia. “Nessa cena, o sujeito dominado, no caso o brasileiro, se afirma pela transformação grotesca da cultura dominante, que não perde, no entanto, esse posto de superioridade”, explica Bernardet.

A paródia, aliás, foi uma importante marca das chanchadas realizadas na Atlântida (destaque para Nem Sansão nem Dalila e Matar ou correr, esgotado), principalmente pelo diretor Carlos Manga, responsável por, entre outros, Carnaval Atlântida e Pintando o sete. “Ele aparece com o gênero já bastante instituído e leva o teor político à chanchada com O homem do Sputnik (o filme mostra as peripécias de Oscarito, que acredita que o satélite russo caiu no telhado de sua casa. E, por isso, pensa ser perseguido por um espião norte-americano), valendo-se da paródia para criticar a cultura dominante, principalmente norte-americana”, descreve Bernardet.

O caráter político, aliás, é outro papel bem desempenhado pelo gênero, como explica Mônica Campo: “Estas produções cinematográficas deram visibilidade ao que estava sendo veiculado nas rádios a partir dos anos 1930. A Rádio Nacional e o projeto nacionalista colocado em evidência desde a centralização política produzida nos anos Vargas foram ali fomentados em imagens e estimulavam um público consumidor que passava a participar desta esfera de conhecimento e identidade constituída no meio da comunicação de massa”.

O início da década de 1960 já encontra a chanchada mais fragilizada e perto do seu fim, muito devido ao fato de, segundo Jean-Claude Bernardet, ter se tornado repetitiva e esgotada em si mesma. “Na virada dos anos 1950 para os 1960, o cinema começa a enfrentar a concorrência da televisão. Então, com a falta de renovação da chanchada, aparece o cangaço, que, durante cinco anos, torna-se o novo cinema de grande público. E, já nos anos 70, acontece o estouro de filmes como Dona Flor e seus dois maridos (dirigido por Bruno Barreto, em 1976, esgotado), e a Boca do Lixo, em São Paulo”, descreve. “Nesse momento, o produtor Oswaldo Massaini sacou que a chanchada estava acabando e, com o seu grande tino de produtor, realizou, em 1962, O pagador de promessas (dirigido por Anselmo Duarte e premiado com a Palma de Ouro em Cannes, esgotado). Entrávamos então em uma nova fase."


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