AGENDA CULTURAL

12.1.14

Comer não é só matar a fome

REVISTA E - SESCSP - DEZEMBRO DE 2013
O ato de comer pode parecer corriqueiro, mas incita reflexões que envolvem desde a esfera cotidiana até distúrbios alimentares e debates filosóficos


Fundamental para a manutenção da vida, a alimentação tem um papel que vai muito além do mero atendimento às necessidades biológicas. As reflexões que podem surgir do tema são extremamente enriquecedoras, apesar de serem praticamente inexploradas. O que comemos? O que motiva nossas escolhas alimentares cotidianas? As ações envolvidas no ato de comer são imprescindíveis para que o indivíduo compreenda as bases da formação do seu hábito alimentar e para que enxergue as implicações para sua saúde, bem-estar e qualidade de vida. Atualmente, a pressa e a praticidade são os maiores provocadores de uma alimentação descuidada.


De acordo com a assistente para o programa de alimentação da Gerência de Saúde e Alimentação do Sesc, Mariana Ruocco, a falta de tempo gerada pelos desafios da vida moderna pode ter levado o ser humano a ignorar, equivocadamente, a qualidade daquilo que ingere. “Muito comum no Brasil, o restaurante por quilo normalmente dispõe de uma grande variedade de preparações, entre saladas, pratos principais, guarnições, bebidas e sobremesas”, diz Mariana. “No entanto, se o consumidor não detém conhecimento sobre a alimentação saudável, diante da oferta de várias opções, ele pode montar um prato quantitativamente e qualitativamente desequilibrado e em desacordo com as suas necessidades nutricionais.”



Ao mesmo tempo que a alimentação fora do lar se torna mais comum e frequente na população brasileira, há um maior consumo de alimentos industrializados em casa, devido ao tempo de refeições cada vez mais curto.“A falta de reflexão sobre o produto que é adquirido e consumido e as escolhas alimentares exercidas por influências do mercado devem ser revistas pela população”, acrescenta Mariana.“Fatores ligados ao ato de se alimentar, como espaço, companhia, modo de comer e emoções associadas a esse processo, também precisam ser considerados nos esforços para compreender os hábitos alimentares e permitir sua readequação.”
A historiadora e cozinheira Sula Santana acredita que a correria do dia a dia não é desculpa para uma alimentação irresponsável. “Se não podemos almoçar em casa, encontramos boas opções de restaurantes que estão ocupados em oferecer refeições bem-feitas, pensadas num modelo em que sabor e valor nutricional são respeitados. Ou levamos a nossa marmita”, comenta. Para ela, o ponto de partida seria preparar a própria comida valorizando e dando sentido a este momento, pelo menos uma vez na semana. Todas as etapas são igualmente importantes: desde a escolha do cardápio, priorizando verduras, frutas e legumes; à compra dos ingredientes – tomando cuidado com as escolhas (se são produtos da época, com melhor qualidade e preço) e com a origem deles (de onde eles vêm, quais os cuidados tomados por aquele que planta, se esse ingrediente vem de muito longe).


“Atenção nos cortes e preparo para obter uma comida bem-feita e visualmente bela. Depois de pronta, compartilhar com alguém, dando um sentido à própria comida. Fazendo desses pequenos momentos uma rotina, provavelmente passaremos a cuidar mais da alimentação.”


A chef, designer gráfica e pesquisadora das representações das imagens do comer pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Eleonora Soledade, reconhece que é muito difícil cuidar da alimentação em meio às rotinas extenuantes. Porém, prefere um pensamento positivo, sem culpas. “Na prática, pensar na logística e no planejamento é a solução. Para mim, uma compra semanal, direto com o produtor ou na feira ou ainda no sacolão, vale como um passeio e abastece a casa. Ter sempre à vista frutas – aquelas de que você gosta, as da estação –, folhas e legumes frescos é melhor que ter a despensa cheia de calorias vazias”, aconselha.


“Cozinhar com sabores, ervas, especiarias, com prazer, como um ritual. Ligue a música, arrume uma bela mesa, inclua as crianças, ou familiares, amigos. Perdemos o hábito do convívio, do coletivo. Há que se resgatar isso.” A chef explica que quanto menos processados os alimentos, melhor; e lembra, no entanto, que há boas opções de legumes picados, fatiados e carnes já cortadas. “Tente evitar aromatizantes, corantes, realçadores de sabor, comida de mentira. Mas usufrua o momento de comer com alegria e, quando possível, com alguém de que você gosta”, afirma.

Além do garfo e da faca

Mariana Ruocco também aponta que alguns aspectos emocionais ligados à alimentação podem provocar desequilíbrios nutricionais. Segundo a assistente do Sesc, a obesidade está muitas vezes ligada à compulsão alimentar gerada pelo estresse e ansiedade comum na vida cotidiana. Por outro lado, o baixo peso pode estar associado à bulimia e anorexia, num contexto atual de valorização do corpo magro, atingindo sobretudo mulheres que buscam reconhecimento social.



“Em 2012, o percentual de adultos com excesso de peso ultrapassou pela primeira vez o índice de 50%, segundo a pesquisa Vigitel do Ministério da Saúde. Se este episódio por si só já se configura uma situação de alerta, o aumento do número de crianças e adolescentes acima do peso é uma evidência do quanto ainda temos que investir em educação nutricional”, relata Mariana. “O assunto é primordial e deveria constar nas pautas relacionadas à educação e saúde em todas as esferas, principalmente se considerarmos que os hábitos alimentares se formam durante a infância, contribuindo assim para a prevenção e redução do risco para o desenvolvimento de doenças crônicas não transmissíveis (DCNT) associadas à obesidade.”



Para ela, o grande desafio da educação no campo da nutrição é a valorização da alimentação, sem desconsiderar os valores, culturas, relações sociais, crenças, questões econômicas e geográficas, através do desenvolvimento de novos sentidos e significados em relação aos alimentos e ao ato de comer.


O filósofo e educador Renato Janine Ribeiro relembra que Ludwig Feuerbach [filósofo alemão] já dizia que “o homem é o que ele come”. Para Janine, a consciência a respeito do que o indivíduo ingere mobiliza movimentos importantes como os vegetarianos, além de estar presente nas numerosas dietas que incentivam a redução de peso e a melhora da qualidade de vida. “A maior parte das pessoas pensa que a felicidade é um prazer vitaminado. Mas na verdade o prazer está no instante e é efêmero, ao passo que a felicidade é ‘um estado simples e permanente, no qual a alma basta a si mesma’ (Rousseau). Comer mais do que o necessário é prazer, contentar-se com pouco é felicidade”, explica.


O filósofo ainda questiona o conceito de felicidade associado ao ato de comer. “O que queremos da vida, o prazer imediato, ao custo de sérios prejuízos à saúde, de uma vida abreviada, na qual o conforto presente produz o desconforto futuro – ou a felicidade, que supõe moderação e temperança (não por acaso, palavras associadas à comida e à bebida)? Eis a questão, altamente filosófica”, completa.




MAR DE SABORES


Eleonora Soledade adapta cardápio saudável às rotinas mais atribuladas

 Na oficina “Pais e Filhos na Cozinha” (26/10, no Sesc Belenzinho), a chef de cozinha, designer gráfica e pesquisadora das representações das imagens do comer pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Eleonora Soledade, convidou famílias a refletir sobre as possibilidades do sabor. “Propus pensarmos o comer e a comida que escolhemos cotidianamente sem radicalismos. O importante é sair do automático, pensar e sentir antes de comer. Dessa forma, é possível construir uma relação positiva e produtiva com a alimentação, fator fundamental”, explica.


Para manter uma rotina alimentar saudável e natural, a chef propõe algumas dicas práticas do que carregar na bolsa para espantar a fome: frutas frescas ou secas, castanhas do Pará, nozes, chocolate amargo. Para o almoço, Soledade sugere arroz e feijão preto cozido com abóbora, legumes refogados em alho e cebola, assados, conservas. Outro conselho é evitar alimentos ensacados com excessiva adição de sal e açúcar. “Sei que é cansativo cozinhar e nem sempre dá tempo, mas se todos ajudarem e o momento de preparo e de organização final da cozinha for prazeroso, tudo muda. Sem radicalismos, honrando nossas tradições e heranças culturais, nosso feijão cotidiano. Vale também fazer uma festa na cozinha uma vez por semana e congelar a comida pra depois”, explica. 

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