29/09/2014 - Revista E - Sesc
Escritor fala sobre como a cegueira influenciou sua poesia, os recursos eróticos que utiliza na escrita e momentos marcantes de sua trajetória literária
Glauco Mattoso é o pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva, que adotou o nome artístico como um trocadilho com o glaucoma, doença que lhe fez perder a visão em 1995. O escritor estreou na poesia em 1975, com Apocrypho Apocalypse, e na prosa de ficção em 1986, com o romance Manual do Podólatra Amador. Desde que ficou cego, dá preferência aos sonetos, de mais fácil memorização.
Na entrevista a seguir, Glauco fala sobre como exorciza a violência pela literatura, a maneira explícita com que utiliza os recursos eróticos na escrita e sua relação com os sonetos: “Para mim, o soneto virou mania e vício, tipo uma droga para escapar da cegueira, ocupando a cabeça com alucinações rimadas, metrificadas e ritmadas. Só parei quando cheguei ao soneto 5.555 e, mesmo assim, com muita força de vontade, como quem deixa de fumar ou beber”.
Seu nome artístico, Glauco Mattoso, é um trocadilho com glaucomatoso, vocábulo usado para indicar a doença que leva à cegueira e da qual você padece. Colocar-se a nu não é um costume na literatura brasileira. Bilac, que era estrábico, não se deixava fotografar em seu lado menos estético.
Ah, mas Lampião, que era caolho que nem Camões, fazia questão de ser fotografado com tapa olho, feito um Moshe Dayan [militar e político israelense] da caatinga. Eu sou Ferreira da Silva, como ele, sobrenome bem povão da Zona Leste, onde me criei. Nem tudo é vaidade na literatura. Tem gente que adora um holofote, como o Paulo Coelho, enquanto outros, como o Dalton Trevisan, odeiam câmeras. Cada um com seu motivo. Acho que o meu vem mais da franqueza que da vaidade. E a franqueza vem da defesa, que não é estratégia de marketing, mas de luta contra a discriminação. Na Zona Leste, a molecada barra-pesada me zoava por ser quase cego e, a despeito disso, ser primeiro da classe. Fui sexualmente abusado pelos outros pivetes. Do abuso vem meu masoquismo e do masoquismo a catarse por via literária. Do contrário, eu teria que somar o bullying juvenil à cegueira adulta e acabaria me matando, me drogando ou enlouquecendo. A saída foi abrir o jogo, exorcizar a violência decantando a violência. Tanta franqueza tinha que começar pela explicitação do meu “personagem” pelo próprio nome literário. Mas a fundamentação autobiográfica não se esgota na autoflagelação nem na autoestima, pois ela me identificou com outros excluídos e oprimidos, a classe dos “esquerdistas”, como digo. Oprimido, sim, mas nunca reprimido. Com isso, a figura do “queer” [a queer theory é uma teoria sobre o gênero que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o resultado de uma construção social] ultrapassa o rótulo de “maldito” ou de “marginal” para entrar numa categoria que os acadêmicos chamam de “anticanônico” e eu chamo de “desiluminista”, como no soneto abaixo.
OBJECTIVO ADJECTIVO [soneto 4.131]
Chamaram-me de tanta coisa, até
maldito e marginal, que “pós-maldito”
não basta a um pós-moderno e já nem cito
tal rótulo, senão me falta um “pré”...
Sou meio “barroquista” porque fé
professo no barroco e noutro mito,
o contracultural. Jamais omito
que sou “pornosiano” e afeito ao pé.
Mas “desiluminista” também não
explica esta cegueira, como nem
por ser “desumanista” encarno o Cão.
“Anarcomasoquista” talvez bem
me sirva... Outros, por certo, servirão,
si um cego sonetista seja alguém.
Jorge Luis Borges também ficou cego. Leitor voraz, pedia a uma secretária que lesse em voz alta seus livros preferidos. No seu trabalho, o que mudou depois do agravamento de sua doença?
No caso do Borges era mais que uma secretária, já que se casou com a japonesa. Se há alguma coisa que herdei de Borges foi a bruxaria, como em O Nome da Rosa, pois o Além me enviou um anjo japonês chamado Akira, que também é mais que secretário. A diferença é que Borges até abençoa sua cegueira, enquanto eu amaldiçoo a minha. Ele não tinha computador e a máquina falante foi o que mudou no meu caso, pois a temática ainda é suja e violenta. Outro detalhe da mudança foi a disciplina mental, a necessidade dos recursos mnemônicos, que me levou ao verso metrificado, rimado, e ao soneto rigoroso. Tive que fazer até um tratado de versificação para reciclar aquele do Bilac e outros.
Você teve uma atuação poética e intelectual intensa nas décadas passadas. Escrevia artigos, resenhas, publicou jornais de intervenção. Os poetas e escritores brasileiros, mais recentemente, não se tornaram menos polêmicos? Quase não discutem a obra de seus contemporâneos. O que acha?
Acho que depende de temperamento, mais que de tempo ou de lugar. Também não adianta ser polemista só para comprar briga e ganhar fama de “intelectual combativo” ou de “artista engajado”. Prefiro polemizar dentro da própria obra, aproveitando para criar, e não desperdiçando munição em debates meramente retóricos ou teóricos. Por isso sempre evitei as panelinhas e igrejinhas, e fiz amigos e inimigos em todas elas. Felizmente, os amigos foram do porte do Augusto de Campos e do Millôr, que eram meus ídolos e se tornaram quase padrinhos, pela força que me deram. Quanto aos inimigos, os que não morreram abraçados estão nadando de braçada no mercado editorial ou midiático, ou, como diria Cazuza, “estão no poder”. Aos polemistas dediquei sonetos como este que vai a seguir, tirado do livro A Maldição do Mago Marginal.
QUESTÃO CONTROVERSA [soneto 4.023]
“Fulano é um polemista!” Quem comenta
pretende elogiá-lo. A mim, contudo,
tais tipos não convencem. Não me iludo:
“polêmica” é só prosa barulhenta.
Prefiro criar algo que acrescenta
mais número e valor. Não fico mudo
se sou desafiado, mas me escudo
no verso, que perdura e se sustenta.
Palavra debatida é folha ao vento,
que o tempo anula e mata: só me atrevo
a dá-la por escrito a alguém que enfrento.
Se está gravado em baixo, alto relevo,
não sei, mas é na pedra que o momento
do embate se eterniza no que escrevo.
Ao longo da década de 1970-1980 você foi identificado como autor de poesia marginal. O que caracterizava essa poesia marginal? Era mais uma postura política ou estética?
Nenhuma das duas. Era uma postura alternativa. Sem coragem para entrar na luta armada e sem bagagem para entrar no debate estético, os “marginais” apenas “desbundavam”, escapando da ditadura pela via mais viável, a do escapismo. Filosoficamente falando, também foi uma atitude política, já que o existencialismo valoriza mais a performance que o script. Na hora de peneirar o conteúdo, porém, cada um tem que ser aquilatado pela obra individual e não pelo rótulo coletivo de “marginal” ou “alternativo”. Aos rotulados dediquei o soneto a seguir.
IMPROVISADO [soneto 671]
Não há publicação que mais fascine
leitores e editores, mesmo os poucos.
Utópicos, fanáticos ou loucos,
são eles os arteiros do fanzine.
Quadrinhos, som, ficção, poema ou cine,
seus temas, e um autor sofre sufocos
brigando pra vender por parcos trocos
um meio independente que opte e opine.
Se “ver com olhos livres” é anarquismo,
o zine é o órgão máximo da imprensa
“nanica”, “marginal”, qualquer batismo.
Seu mérito maior é o que ele pensa
e exprime, coerente com o abismo
que aparta a liberdade da licença.
A poesia brasileira da década de 1980-1990 é bastante marcada pelo informalismo. Alguns críticos dizem que são obras de quem leu pouca poesia. Sua obra, pelo contrário, é elogiada pela eloquência intelectual.
Meu caso deve mesmo ser coisa de “nerd”, ou de “queer”, como disse numa tese o brasilianista Steven Butterman. Bem antes, José Paulo Paes já dissera que eu diferia dos demais “marginais” pela erudição, mesmo motivo que levou Jorge Schwartz a me qualificar como um “marginal à margem”. Não posso nem quero contrariar tais opiniões. Cada um tem seus motivos para ler menos ou mais. Na fase do “desbunde” pós-tropicalista (que equivaleu à nossa era hippie retardatária), a galera estava mais interessada em se chapar e em ouvir um som contestador que em ler clássicos. Liam, no máximo, por força da inércia, o “maior poeta vivo” de então, Drummond, enquanto eu me bacharelava em biblioteconomia e devorava livros censurados pela ditadura nos “infernos” das bibliotecas, feito um Borges retardatário. Tudo porque precisava correr contra o relógio, já que a cegueira se aproximava.
Você ganha fama por realizar trabalhos marcados pela sátira e por viés fescenino. Na poesia brasileira são traços bastante incomuns. Por que escolhe esse caminho?
Na verdade nem tive muita escolha. A iminência da cegueira total me levou a ler desesperadamente e a consumação da cegueira me levou a desabafar para não ficar louco. Ao contrário de Milton, que desabafava a sério para não ofender o Deus em que acreditava, a mim me restou revidar o bullying com a autogozação masoquista, assumindo a “persona” do palhaço que diverte a plateia sádica. Foi o mínimo de compensação que eu podia conseguir: rir da própria desgraça. E até que tive bons precursores, se considerarmos as obras mais sacanas de Gregório, Laurindo, Emilio, Bocage, Lobo da Madragoa ou Abade de Jazente. Mais recentemente, me sinto menos isolado nessa sacanagem por causa da grande parcela dos cantadores nordestinos que transformaram a poesia de cordel em poesia de bordel.
Parte da poesia e da literatura sempre discutiu certa busca da identidade brasileira. Seu trabalho em algum momento se preocupou com essa questão?
Ah, diversas vezes! Em prosa aproveitei a análise de Gilberto Freire sobre o típico pé do mulato brasileiro para a minha paródia de A Pata da Gazela, de José de Alencar, romance que batizei de A Planta da Donzela. Em poesia desenvolvi uma teoria da “coprofagia” para reciclar a “antropofagia” de Oswald de Andrade. Meu último romance, composto em sonetos e chamado Raimundo Curupira, o Caipora, tem num dos personagens a versão pós-moderna do mulato macunaímico. Mas sempre com o viés sadomasoquista, para explicitar a violência da nossa luta de classes e para desmascarar a nossa falsa imagem de “povo pacífico” e de “democracia racial” atribuída à miscigenação.
O componente sexual é forte na sua obra. É outro traço dissonante na tradição da poesia brasileira, em que poucos autores caminharam com esses ingredientes?
A dissonância talvez esteja na explicitude com que eu utilizo os recursos eróticos e pornográficos. Muitos ditos “poetas maiores” têm obras pornôs, como Bilac, Bandeira ou Drummond, mas as mantiveram na gaveta, envergonhados e medrosos. Eu estou condenado a não ter medo do chulo e do calão se quiser desabafar a minha biografia. Cada obra nasce da própria experiência. Quem teve experiência mais crua e nua tem menos pudor ao tematizá-la, acho eu.
Aliás, esse puritanismo da poesia brasileira contrasta com a fama do brasileiro, conhecido ao menos por sua exuberância sexual, haja vista o carnaval e outras festas. Seria a tradição religiosa que suavizaria esse traço?
No caso de Portugal, a tradição religiosa e inquisitorial realmente pesou, já que os mais pornográficos poetas, como Bocage, foram corajosamente anticlericais. No Brasil, tudo sempre foi mais tropicalmente orgíaco, ou mais dionisíaco, como diria o Zé Celso, mas o moralismo das elites brancas hipocritamente mascarava a nossa sacanagem. Como a poesia, até depois do modernismo, era mais livresca e salonística que carnavalesca e rueira, os autores mais respeitáveis evitavam divulgar seu lado obsceno.
Percebe-se que muitos autores de sua geração, antes mais dissonantes, hoje percorrem um discurso menos incisivo, até conservador. Você, pelo contrário, não suavizou sua postura.
Quanto a muitos rebeldes que só o são enquanto jovens, há um ditado que diz: o diabo se faz ermitão. Mas no meu caso vale o ditado que diz: o lobo muda o pelo, mas não muda o vício.
Tempos atrás você tinha realizado mais de 2.300 sonetos. Por que você quis superar o recorde do poeta Giuseppe Belli, que escreveu, segundo consta, algo como 2.279 sonetos?
Para mim, o soneto virou mania e vício, tipo uma droga para escapar da cegueira ocupando a cabeça com alucinações rimadas, metrificadas e ritmadas. Belli, que também foi anticlerical, compunha obsessivamente porque não podia publicar. Ele era considerado um caso patológico. Ora, eu também sou um caso clínico de obsessão, por isso me obriguei a superar o recorde de Belli. Só parei quando cheguei ao soneto 5.555, e mesmo assim com muita força de vontade, igual à de quem deixa de fumar ou beber. O curioso foi que, depois de ter parado de sonetar, em 2012, descobri que estou diabético e prostático, e agora vivo à base de dietas e remédios. Tem algo de sobrenatural nisso, estou certo.
Seus poemas visuais mantinham uma conexão com a poesia concreta. Onde eles iam além, em termos de temário?
Nunca fui um concretista de cartilha ou de plano-piloto. Três coisas me diferenciaram da pureza concreta: escatologia, sátira e subjetividade. A proposta concreta era imaculada, sisuda e impessoal demais e eu, deliberadamente, a parodiei bem e porcamente. Vá lá que toda paródia pressupõe um tributo, uma homenagem ao original, mas eu não podia resistir à tentação de sacanear um pouco com o objeto da minha admiração.
A cegueira faz com que você abandone a poesia visual e se dedique ao verso clássico. Essa virada é causada apenas pela doença ou era chegado o momento de uma modificação de acento?
Acho que foi tudo junto, como que uma convergência de fatores fatídicos. A cegueira chegou como uma oportunidade de me disciplinar e usar todos os recursos da memória para me organizar e enfrentar o desafio de fazer com a forma fixa aquilo que eu fizera com o verso livre, isto é, anarquizar na essência sem sacrificar a aparência.
Seus sonetos transitam por temas como cinema e religião. Como você escolhe os assuntos? Qualquer assunto pode virar um soneto?
Já me chamaram de enciclopedista por causa dessa mania de verbetar tudo em forma de soneto. Um pouco é por causa da minha formação de bibliotecário, que tende a classificar e catalogar todos os assuntos. Um pouco é por causa da dessacralização mesmo, para mostrar que soneto não é só coisa elevada e pura, para provar que serve também de papel higiênico e de lata de lixo, como qualquer obra de arte que diga respeito à natureza humana.
O soneto é um estilo pouquíssimo praticado na poesia atual. Entre outras razões pelo fato de recorrer à métrica e à necessidade criativa nas rimas. Onde você se expressa melhor: no verso aberto ou no rimado?
Ah, no rimado! Mais que isso: no metrificado e ritmado.
“A iminência da cegueira total me levou a ler desesperadamente e a consumação da cegueira me levou a desabafar para não ficar louco nem me matar”
“Na hora de peneirar o conteúdo, porém, cada um tem que ser aquilatado pela obra individual e não pelo rótulo coletivo de ‘marginal’ ou ‘alternativo’”
“Cada obra nasce da própria experiência. Quem teve experiência mais crua e nua tem menos pudor ao tematizá-la, acho eu”
“A cegueira chegou como uma oportunidade de me disciplinar e usar todos os recursos da memória para fazer com a forma fixa aquilo que eu fizera com o verso livre, isto é, anarquizar na essência sem sacrificar a aparência”
Glauco Mattoso é o pseudônimo de Pedro José Ferreira da Silva, que adotou o nome artístico como um trocadilho com o glaucoma, doença que lhe fez perder a visão em 1995. O escritor estreou na poesia em 1975, com Apocrypho Apocalypse, e na prosa de ficção em 1986, com o romance Manual do Podólatra Amador. Desde que ficou cego, dá preferência aos sonetos, de mais fácil memorização.
Na entrevista a seguir, Glauco fala sobre como exorciza a violência pela literatura, a maneira explícita com que utiliza os recursos eróticos na escrita e sua relação com os sonetos: “Para mim, o soneto virou mania e vício, tipo uma droga para escapar da cegueira, ocupando a cabeça com alucinações rimadas, metrificadas e ritmadas. Só parei quando cheguei ao soneto 5.555 e, mesmo assim, com muita força de vontade, como quem deixa de fumar ou beber”.
Seu nome artístico, Glauco Mattoso, é um trocadilho com glaucomatoso, vocábulo usado para indicar a doença que leva à cegueira e da qual você padece. Colocar-se a nu não é um costume na literatura brasileira. Bilac, que era estrábico, não se deixava fotografar em seu lado menos estético.
Ah, mas Lampião, que era caolho que nem Camões, fazia questão de ser fotografado com tapa olho, feito um Moshe Dayan [militar e político israelense] da caatinga. Eu sou Ferreira da Silva, como ele, sobrenome bem povão da Zona Leste, onde me criei. Nem tudo é vaidade na literatura. Tem gente que adora um holofote, como o Paulo Coelho, enquanto outros, como o Dalton Trevisan, odeiam câmeras. Cada um com seu motivo. Acho que o meu vem mais da franqueza que da vaidade. E a franqueza vem da defesa, que não é estratégia de marketing, mas de luta contra a discriminação. Na Zona Leste, a molecada barra-pesada me zoava por ser quase cego e, a despeito disso, ser primeiro da classe. Fui sexualmente abusado pelos outros pivetes. Do abuso vem meu masoquismo e do masoquismo a catarse por via literária. Do contrário, eu teria que somar o bullying juvenil à cegueira adulta e acabaria me matando, me drogando ou enlouquecendo. A saída foi abrir o jogo, exorcizar a violência decantando a violência. Tanta franqueza tinha que começar pela explicitação do meu “personagem” pelo próprio nome literário. Mas a fundamentação autobiográfica não se esgota na autoflagelação nem na autoestima, pois ela me identificou com outros excluídos e oprimidos, a classe dos “esquerdistas”, como digo. Oprimido, sim, mas nunca reprimido. Com isso, a figura do “queer” [a queer theory é uma teoria sobre o gênero que afirma que a orientação sexual e a identidade sexual ou de gênero dos indivíduos são o resultado de uma construção social] ultrapassa o rótulo de “maldito” ou de “marginal” para entrar numa categoria que os acadêmicos chamam de “anticanônico” e eu chamo de “desiluminista”, como no soneto abaixo.
OBJECTIVO ADJECTIVO [soneto 4.131]
Chamaram-me de tanta coisa, até
maldito e marginal, que “pós-maldito”
não basta a um pós-moderno e já nem cito
tal rótulo, senão me falta um “pré”...
Sou meio “barroquista” porque fé
professo no barroco e noutro mito,
o contracultural. Jamais omito
que sou “pornosiano” e afeito ao pé.
Mas “desiluminista” também não
explica esta cegueira, como nem
por ser “desumanista” encarno o Cão.
“Anarcomasoquista” talvez bem
me sirva... Outros, por certo, servirão,
si um cego sonetista seja alguém.
Jorge Luis Borges também ficou cego. Leitor voraz, pedia a uma secretária que lesse em voz alta seus livros preferidos. No seu trabalho, o que mudou depois do agravamento de sua doença?
No caso do Borges era mais que uma secretária, já que se casou com a japonesa. Se há alguma coisa que herdei de Borges foi a bruxaria, como em O Nome da Rosa, pois o Além me enviou um anjo japonês chamado Akira, que também é mais que secretário. A diferença é que Borges até abençoa sua cegueira, enquanto eu amaldiçoo a minha. Ele não tinha computador e a máquina falante foi o que mudou no meu caso, pois a temática ainda é suja e violenta. Outro detalhe da mudança foi a disciplina mental, a necessidade dos recursos mnemônicos, que me levou ao verso metrificado, rimado, e ao soneto rigoroso. Tive que fazer até um tratado de versificação para reciclar aquele do Bilac e outros.
Você teve uma atuação poética e intelectual intensa nas décadas passadas. Escrevia artigos, resenhas, publicou jornais de intervenção. Os poetas e escritores brasileiros, mais recentemente, não se tornaram menos polêmicos? Quase não discutem a obra de seus contemporâneos. O que acha?
Acho que depende de temperamento, mais que de tempo ou de lugar. Também não adianta ser polemista só para comprar briga e ganhar fama de “intelectual combativo” ou de “artista engajado”. Prefiro polemizar dentro da própria obra, aproveitando para criar, e não desperdiçando munição em debates meramente retóricos ou teóricos. Por isso sempre evitei as panelinhas e igrejinhas, e fiz amigos e inimigos em todas elas. Felizmente, os amigos foram do porte do Augusto de Campos e do Millôr, que eram meus ídolos e se tornaram quase padrinhos, pela força que me deram. Quanto aos inimigos, os que não morreram abraçados estão nadando de braçada no mercado editorial ou midiático, ou, como diria Cazuza, “estão no poder”. Aos polemistas dediquei sonetos como este que vai a seguir, tirado do livro A Maldição do Mago Marginal.
QUESTÃO CONTROVERSA [soneto 4.023]
“Fulano é um polemista!” Quem comenta
pretende elogiá-lo. A mim, contudo,
tais tipos não convencem. Não me iludo:
“polêmica” é só prosa barulhenta.
Prefiro criar algo que acrescenta
mais número e valor. Não fico mudo
se sou desafiado, mas me escudo
no verso, que perdura e se sustenta.
Palavra debatida é folha ao vento,
que o tempo anula e mata: só me atrevo
a dá-la por escrito a alguém que enfrento.
Se está gravado em baixo, alto relevo,
não sei, mas é na pedra que o momento
do embate se eterniza no que escrevo.
Ao longo da década de 1970-1980 você foi identificado como autor de poesia marginal. O que caracterizava essa poesia marginal? Era mais uma postura política ou estética?
Nenhuma das duas. Era uma postura alternativa. Sem coragem para entrar na luta armada e sem bagagem para entrar no debate estético, os “marginais” apenas “desbundavam”, escapando da ditadura pela via mais viável, a do escapismo. Filosoficamente falando, também foi uma atitude política, já que o existencialismo valoriza mais a performance que o script. Na hora de peneirar o conteúdo, porém, cada um tem que ser aquilatado pela obra individual e não pelo rótulo coletivo de “marginal” ou “alternativo”. Aos rotulados dediquei o soneto a seguir.
IMPROVISADO [soneto 671]
Não há publicação que mais fascine
leitores e editores, mesmo os poucos.
Utópicos, fanáticos ou loucos,
são eles os arteiros do fanzine.
Quadrinhos, som, ficção, poema ou cine,
seus temas, e um autor sofre sufocos
brigando pra vender por parcos trocos
um meio independente que opte e opine.
Se “ver com olhos livres” é anarquismo,
o zine é o órgão máximo da imprensa
“nanica”, “marginal”, qualquer batismo.
Seu mérito maior é o que ele pensa
e exprime, coerente com o abismo
que aparta a liberdade da licença.
A poesia brasileira da década de 1980-1990 é bastante marcada pelo informalismo. Alguns críticos dizem que são obras de quem leu pouca poesia. Sua obra, pelo contrário, é elogiada pela eloquência intelectual.
Meu caso deve mesmo ser coisa de “nerd”, ou de “queer”, como disse numa tese o brasilianista Steven Butterman. Bem antes, José Paulo Paes já dissera que eu diferia dos demais “marginais” pela erudição, mesmo motivo que levou Jorge Schwartz a me qualificar como um “marginal à margem”. Não posso nem quero contrariar tais opiniões. Cada um tem seus motivos para ler menos ou mais. Na fase do “desbunde” pós-tropicalista (que equivaleu à nossa era hippie retardatária), a galera estava mais interessada em se chapar e em ouvir um som contestador que em ler clássicos. Liam, no máximo, por força da inércia, o “maior poeta vivo” de então, Drummond, enquanto eu me bacharelava em biblioteconomia e devorava livros censurados pela ditadura nos “infernos” das bibliotecas, feito um Borges retardatário. Tudo porque precisava correr contra o relógio, já que a cegueira se aproximava.
Você ganha fama por realizar trabalhos marcados pela sátira e por viés fescenino. Na poesia brasileira são traços bastante incomuns. Por que escolhe esse caminho?
Na verdade nem tive muita escolha. A iminência da cegueira total me levou a ler desesperadamente e a consumação da cegueira me levou a desabafar para não ficar louco. Ao contrário de Milton, que desabafava a sério para não ofender o Deus em que acreditava, a mim me restou revidar o bullying com a autogozação masoquista, assumindo a “persona” do palhaço que diverte a plateia sádica. Foi o mínimo de compensação que eu podia conseguir: rir da própria desgraça. E até que tive bons precursores, se considerarmos as obras mais sacanas de Gregório, Laurindo, Emilio, Bocage, Lobo da Madragoa ou Abade de Jazente. Mais recentemente, me sinto menos isolado nessa sacanagem por causa da grande parcela dos cantadores nordestinos que transformaram a poesia de cordel em poesia de bordel.
Parte da poesia e da literatura sempre discutiu certa busca da identidade brasileira. Seu trabalho em algum momento se preocupou com essa questão?
Ah, diversas vezes! Em prosa aproveitei a análise de Gilberto Freire sobre o típico pé do mulato brasileiro para a minha paródia de A Pata da Gazela, de José de Alencar, romance que batizei de A Planta da Donzela. Em poesia desenvolvi uma teoria da “coprofagia” para reciclar a “antropofagia” de Oswald de Andrade. Meu último romance, composto em sonetos e chamado Raimundo Curupira, o Caipora, tem num dos personagens a versão pós-moderna do mulato macunaímico. Mas sempre com o viés sadomasoquista, para explicitar a violência da nossa luta de classes e para desmascarar a nossa falsa imagem de “povo pacífico” e de “democracia racial” atribuída à miscigenação.
O componente sexual é forte na sua obra. É outro traço dissonante na tradição da poesia brasileira, em que poucos autores caminharam com esses ingredientes?
A dissonância talvez esteja na explicitude com que eu utilizo os recursos eróticos e pornográficos. Muitos ditos “poetas maiores” têm obras pornôs, como Bilac, Bandeira ou Drummond, mas as mantiveram na gaveta, envergonhados e medrosos. Eu estou condenado a não ter medo do chulo e do calão se quiser desabafar a minha biografia. Cada obra nasce da própria experiência. Quem teve experiência mais crua e nua tem menos pudor ao tematizá-la, acho eu.
Aliás, esse puritanismo da poesia brasileira contrasta com a fama do brasileiro, conhecido ao menos por sua exuberância sexual, haja vista o carnaval e outras festas. Seria a tradição religiosa que suavizaria esse traço?
No caso de Portugal, a tradição religiosa e inquisitorial realmente pesou, já que os mais pornográficos poetas, como Bocage, foram corajosamente anticlericais. No Brasil, tudo sempre foi mais tropicalmente orgíaco, ou mais dionisíaco, como diria o Zé Celso, mas o moralismo das elites brancas hipocritamente mascarava a nossa sacanagem. Como a poesia, até depois do modernismo, era mais livresca e salonística que carnavalesca e rueira, os autores mais respeitáveis evitavam divulgar seu lado obsceno.
Percebe-se que muitos autores de sua geração, antes mais dissonantes, hoje percorrem um discurso menos incisivo, até conservador. Você, pelo contrário, não suavizou sua postura.
Quanto a muitos rebeldes que só o são enquanto jovens, há um ditado que diz: o diabo se faz ermitão. Mas no meu caso vale o ditado que diz: o lobo muda o pelo, mas não muda o vício.
Tempos atrás você tinha realizado mais de 2.300 sonetos. Por que você quis superar o recorde do poeta Giuseppe Belli, que escreveu, segundo consta, algo como 2.279 sonetos?
Para mim, o soneto virou mania e vício, tipo uma droga para escapar da cegueira ocupando a cabeça com alucinações rimadas, metrificadas e ritmadas. Belli, que também foi anticlerical, compunha obsessivamente porque não podia publicar. Ele era considerado um caso patológico. Ora, eu também sou um caso clínico de obsessão, por isso me obriguei a superar o recorde de Belli. Só parei quando cheguei ao soneto 5.555, e mesmo assim com muita força de vontade, igual à de quem deixa de fumar ou beber. O curioso foi que, depois de ter parado de sonetar, em 2012, descobri que estou diabético e prostático, e agora vivo à base de dietas e remédios. Tem algo de sobrenatural nisso, estou certo.
Seus poemas visuais mantinham uma conexão com a poesia concreta. Onde eles iam além, em termos de temário?
Nunca fui um concretista de cartilha ou de plano-piloto. Três coisas me diferenciaram da pureza concreta: escatologia, sátira e subjetividade. A proposta concreta era imaculada, sisuda e impessoal demais e eu, deliberadamente, a parodiei bem e porcamente. Vá lá que toda paródia pressupõe um tributo, uma homenagem ao original, mas eu não podia resistir à tentação de sacanear um pouco com o objeto da minha admiração.
A cegueira faz com que você abandone a poesia visual e se dedique ao verso clássico. Essa virada é causada apenas pela doença ou era chegado o momento de uma modificação de acento?
Acho que foi tudo junto, como que uma convergência de fatores fatídicos. A cegueira chegou como uma oportunidade de me disciplinar e usar todos os recursos da memória para me organizar e enfrentar o desafio de fazer com a forma fixa aquilo que eu fizera com o verso livre, isto é, anarquizar na essência sem sacrificar a aparência.
Seus sonetos transitam por temas como cinema e religião. Como você escolhe os assuntos? Qualquer assunto pode virar um soneto?
Já me chamaram de enciclopedista por causa dessa mania de verbetar tudo em forma de soneto. Um pouco é por causa da minha formação de bibliotecário, que tende a classificar e catalogar todos os assuntos. Um pouco é por causa da dessacralização mesmo, para mostrar que soneto não é só coisa elevada e pura, para provar que serve também de papel higiênico e de lata de lixo, como qualquer obra de arte que diga respeito à natureza humana.
O soneto é um estilo pouquíssimo praticado na poesia atual. Entre outras razões pelo fato de recorrer à métrica e à necessidade criativa nas rimas. Onde você se expressa melhor: no verso aberto ou no rimado?
Ah, no rimado! Mais que isso: no metrificado e ritmado.
“A iminência da cegueira total me levou a ler desesperadamente e a consumação da cegueira me levou a desabafar para não ficar louco nem me matar”
“Na hora de peneirar o conteúdo, porém, cada um tem que ser aquilatado pela obra individual e não pelo rótulo coletivo de ‘marginal’ ou ‘alternativo’”
“Cada obra nasce da própria experiência. Quem teve experiência mais crua e nua tem menos pudor ao tematizá-la, acho eu”
“A cegueira chegou como uma oportunidade de me disciplinar e usar todos os recursos da memória para fazer com a forma fixa aquilo que eu fizera com o verso livre, isto é, anarquizar na essência sem sacrificar a aparência”
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