AGENDA CULTURAL

7.12.14

É proibido sofrer

Ora, é no mínimo um contrassenso que uma cultura produtora de situações que provocam dor se paute pelo imperativo da felicidade

Renato Tardivo - Site da revista Cult
Albrecht Dürer, Melancolia I, 1514
Quem não conhece alguém que já sofreu de depressão? Quem ao menos uma vez não recebeu esse diagnóstico? É certo que a depressão envolve muitos fatores e pode ser definida de diferentes formas, mas vamos considerá-la, aqui, naquilo que ela traz de angústia, de falta de investimento nas relações com o outro e com o mundo, considerá-la, em suma, enquanto falta de ímpeto de vida.
Se, por um lado, problemas cotidianos viram transtornos mentais – crianças saudáveis são diagnosticadas como hiperativas, todos sofrem de depressão etc. –, por outro o mundo contemporâneo lança mão de todos os artifícios (e não são poucos) para recusar a dor. “Hoje em dia, só sofre quem quer”, dizem por aí. Boa parte dos tratamentos para a depressão, inclusive, busca esse distanciamento, ou melhor, essa recusa. Na sociedade medicalizada em que vivemos, para tudo existe um remédio, uma droga. Algo apareceu, que desapareça – pela porta dos fundos, de preferência.
A contradição torna-se ainda mais radical quando nos percebemos rodeados de catástrofes, tragédias, cenas mórbidas. Eventos desse tipo estão cada vez mais presentes no cotidiano. Ora, é no mínimo um contrassenso que uma cultura produtora de tanto caos, isto é, de situações que provocam dor, se paute pelo imperativo da felicidade. Todo mundo sofre de depressão, ao mesmo tempo em que ninguém deveria sofrer disso. Estranho, não é?
Tomemos um exemplo. Se primeiro com a fotografia, depois com a televisão, alterou-se o modo com que lidamos com a guerra, hoje são os vídeos capturados por aparelhos celulares e imediatamente jogados na internet que nos fazem repensar essas situações em que um homem mata o outro. Para citar circunstâncias recentes: como é possível assistir ao vídeo de um degolamento de um prisioneiro de guerra e não se importar? Ver fotos de crianças massacradas em bombardeios e isso ser normal?
Esses casos-limite talvez nos ajudem a encaminhar o problema. Hoje em dia, existe uma demanda altíssima por cenas mórbidas. Com efeito, desde o surgimento da vida moderna, lembra-nos Susan Sontag no livro Diante da dor dos outros, o sofrimento é considerado um erro, um crime, um acidente. Há, nessa acepção, uma aproximação entre dor e sacrifício, entre sacrifício e exaltação. A dor deve ser evitada na mesma medida em que exaltamos aqueles a quem ela é inevitável.
Isso pode indicar que, ainda que a recusemos – ou justamente por isso –, reconhecemos que a dor pode portar um sentido. Aquele que sofre resiste, de algum modo, às demandas do mundo, hoje regulado pelo imperativo de uma felicidade pautada pelo consumo descartável (lógica da qual a indústria farmacêutica se alimenta, diga-se). Dessa perspectiva, não seria correto dizer que nada sentimos ao assistir a um degolamento em um vídeo na internet. Em vez disso, recusamos tomar contato com o sofrimento contido nessas cenas, como de resto nas demais catástrofes a que já parecemos habituados, porque se trata de um sofrimento que é também nosso. Assim, a suposta passividade com que lidamos com a dor do outro nada mais seria do que expressão da passividade com que lidamos com a nossa dor.
Com efeito, há um trânsito perverso nisso. Freud afirmou que o estranho é familiar, ou seja, estranhamos aquilo que mais diz a nosso respeito. O estranho é o que deveria permanecer recalcado mas foi descoberto, veio à luz. Nós reconhecemos que a estranheza contida nas tragédias a que tomamos contato diariamente diz também a nosso respeito. E por isso as recusamos: fingimos que não é conosco.
Nessa mesma direção, a patologização e a decorrente banalização de todo o tipo de sofrimento estão justamente a serviço de sua recusa. É evidente que a busca pelo bem-estar e por uma vida produtiva é legítima. Precisamos questionar, contudo, os meios desenfreados pelos quais empreendemos essa busca. O fato de para todos os problemas cotidianos existir uma medicação que supostamente nos liberta dos sintomas perpetua a anulação do sujeito que (não) sofre, trazendo ainda mais sofrimento. Se, como no poema de Drummond, “E há em todas as consciências um cartaz amarelo: / ‘Neste país é proibido sonhar’”, hoje nós regredimos para: “É proibido sofrer”.
Renato Tardivo
Escritor e psicanalista, vive em São Paulo. Mestre e doutorando em Psicologia pela USP, é professor do Centro Universitário São Camilo e autor de Do avesso (Com-arte/USP), Silente (7Letras) e Porvir que vem antes de tudo – literatura e cinema em Lavoura arcaica (Ateliê Editorial/Fapesp).

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