AGENDA CULTURAL

24.11.15

Descascando laranja


Hélio Consolaro*

Não sei por que, caro leitor, mas vou lhe contar um fato que é só meu. Estou revelando a minha intimidade, mas, nós, seres humanos, somos tão parecidos que, 
com certeza, você também deve ter algum outro semelhante que seja só seu, e ele é recorrente, porque toda vez que acontece vem à cabeça as lembranças, com as mesmas imagens.

A laranja pode ser a mais azeda possível, mas descascá-la me traz doces lembranças. Não se trata de cortar a laranja ainda com casca em quatro partes. Nem aquele método de deixar a laranja nua, aparecendo todos os gomos.

Não, caro leitor, trata-se da descascação em rodilha, fazendo aquela longa tira que, depois de seca, serve para acender o fogão à lenha. As rodilhas do cérebro se confundem com a laranja.

Lá no sítio, a gente chupava laranja aos montes, fazendo monturo de casca, no pomar, apanhando da laranjeira e chupando as frutas, sem lavar mesmo.
   
O meu maior desejo quando criança era descascar laranja assim como meu pai, minha mãe, os adultos, em rodilha. Quando eu consegui, me senti um soldado raso passando a ser cabo.



A laranja ainda é minha fruta preferida. Às vezes, atravesso a cidade para encontrar a laranja-da-baía (ou laranja de umbigo) no supermercado Pão de Açúcar, quando o supermercado Amigão falha comigo.

Não há mais variedade de tipos. Laranja, só a pera; a melancia, só a Santa Bárbara; a manga, só a Haden, que é transgênica. Só permaneceram a espécie que resiste mais ao tempo na gôndola, não apodrece logo. E aos poucos vão chegando as frutas transgênicas, como a melancia pequena, sem sementes.

Outro dia me peguei descascando laranja na pia da cozinha de casa, fazendo rodilha. O mamão ou a banana é minha fruta do café da manhã. A laranja encerra meu almoço e meu jantar. Esse ato de descascar laranja me leva para a zona rural, onde passei a minha infância. 

Não tive uma meninice boa, mas era um tempo em que não se vendia água. Pulei cercas, chupei frutas silvestres, fui a pé para a escola, até chegar com a faca ao pé da laranja.

Descascar laranja é descobrir o mundo, chupá-la, dando a tampinha para a companheira, e depois engolir o bagaço. Saborear os saberes da vida.


*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Secretário municipal de Cultura de Araçatuba-SP

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