Os robustos móveis de madeira combinam com a grande mesa de jantar preta em que Elza Soares conversa com a equipe de QUEM em seu apartamento debruçado sobre a orla de Copacabana, no Rio. Nada naquela decoração é por acaso. A cadeira na qual ela se senta é a que fica em direção à ampla janela para o mar. As ondas a fascinam. Toda manhã, numa outra cadeira, próxima dali, ela toma café olhando a paisagem. Com nosso repórter, dispensa cerimônias: “Se me chamar de senhora eu te mato”, brinca.
Desde que passou a sofrer com problemas de locomoção por causa de uma cirurgia na coluna, em 2014 (feita para reparar danos de uma queda do palco anos antes), Elza se move com passos curtos – mas precisos – e continua incansável. Uma das maiores defensoras “das mulheres, dos gays e da negritude”, a cantora de 78 anos está em turnê com o show do álbum A Mulher do Fim do Mundo. A seguir, ela fala sobre as feridas do passado que ainda a machucam – a perda de quatro dos seus sete filhos – e o atual momento do país. Tudo com lucidez invejável.
QUEM: Além de uma dificuldade de mobilidade, como está sua saúde?
ELZA SOARES: Maravilhosa. A coluna, ainda estamos lutando com ela. É muita fisioterapia para voltar ao lugar. Eu operei a cervical e a lombar e por isso fico com os movimentos mais restritos. Mas não sinto dor, só incômodo.
Em um sentido mais amplo: você tem medo de cair?
ES: Nunca tive, exatamente porque sei levantar. Quem luta busca, faz o que eu faço. Não estou aqui de brincadeira. Se não veio ao mundo para ser uma pinta, e sim uma bela mancha, você cai, levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima. A cada queda, eu me levanto melhor.
Em mais de seis décadas de carreira, este é seu primeiro álbum só com inéditas. Como foi o processo de produção?
ES: Foi uma coisa linda! A concepção acabou aqui no chão da sala quando, das 50 músicas que foram compostas, escolhi as 11 que entraram no CD. Isso com o Guilherme Kastrup, produtor e diretor do trabalho. Talvez, quem sabe, a gente ainda não faça outro álbum dando continuidade a este?
Com este trabalho você já ganhou prêmios de melhor álbum e melhor música por diversas instituições. Qual é o seu próximo objetivo?
ES: Gostaria muito de ganhar o Grammy (no ano que vem). Iria linda e maravilhosa para Las Vegas receber o prêmio. Quem sabe, né?! O trabalho está sendo feito para tudo isso. Mas, quando ganho um prêmio, sempre coloco a mão no peito e falo: “Meu Deus, como corri. Como foi bom correr. Cheguei até aqui. Muito obrigada!”. Precisamos ser humildes, cada vez mais. E agradecer. Isso nos leva à grandeza.
A Mulher do Fim do Mundo tem várias faces. Que personagem do CD mais a representa?
ES: “Maria de Vila Matilde”, porque falo para as mulheres. E é uma letra muito forte. Ela me deixa tombada. É a minha história (Elza teve uma relação conturbada com o jogador Garrincha, nos anos 70, que incluía agressões físicas).
A cada sete minutos uma denúncia é registrada no país através do serviço Ligue 180. A música “Maria de Vila Matilde” veio dar esse grito de alerta?
ES: Ela dá um grito de liberdade. A mulher tem que denunciar. Não existe mais isso de apanhar calada, pelo amor de Deus! A denúncia está aí, o 180 (telefone de ajuda à vítima da violência) está aí, a boca está aí para gritar. Vamos gritar nas horas ruins e gemer só na hora boa! As mulheres têm que denunciar. Esses dados são tristes. Fico muito chocada ao saber que, em 2016, ainda há esse tipo de agressão. Não é brincadeira. E a maior parte é sofrida pela mulher negra.
Como lida com o preconceito hoje? Sente alguma rejeição à sua pessoa?
ES: Não. Acho digno como me tratam. Sempre lutei para isso. E como mulher negra, me sinto muito bem com o que conquistei. Ainda falta muito, mas estou feliz. Temos muito chão para correr, mas estamos no caminho certo...
Por que incluiu no repertório uma música (“Benedita”) que representa a mulher transexual?
ES: “Benedita” reafirma que a mulher, inclusive a transexual, está aí para ser respeitada. Basta de homofobia, de transfobia. Pelo amor de Deus, isso precisa parar! Eu tenho um trabalho muito forte a favor das mulheres, da negritude e dos LGBTQ. A música dá mais esse grito para as mulheres.
Você teve a casa metralhada e saiu do país em plena ditadura. Como vê o acirramento dos ânimos no atual cenário político?
ES: Eu não gosto de me aprofundar em política porque, se eu abrir a minha boca, vai ser uma coisa terrível... Votei na Dilma por ela ser mulher. Votei pela classe feminina. Acredito que todos queriam uma mulher no poder, o resto não sei. Isso tudo me deixa muito inquieta e assustada. Estamos passando por um período nebuloso e de muita tensão. Entretanto, me alegra saber que estamos em uma democracia e todos podemos ser investigados como iguais. Viver na democracia é dizer eu sou, eu canto, eu posso.
Que lembranças traz do período em que esteve junto com Garrincha (que morreu vítima de alcoolismo, em 1983)?
ES: Foram 17 anos juntos. Hoje é chique ser mulher de jogador, é uma promessa de futuro. Mas, quando se faz por amor, a pessoa não se arrepende nunca. Não tenho mágoas, passado é passado. Passou! My name is now. Eu vivo o agora. O futuro não sei.
Ainda tem feridas abertas do passado?
ES: A única coisa do passado que ainda me machuca é a perda dos meus quatro filhos (Gilson, de 59, faleceu há um ano, por complicações decorrentes de uma infecção urinária; os dois primeiros nem chegaram a ter nome, morreram de fome nos anos 50; e o terceiro, Garrinchinha, o único que ela teve com o jogador, em 1986, faleceu em um acidente de carro em Magé, no Rio). O resto tiro de letra. Mas filho é uma ferida aberta que não cicatriza. Estará sempre presente.
Diversas vezes você declarou ser “muito sexual”. Como é esse assunto hoje? Ainda namora?
ES: A minha sexualidade está no CD. Está tudo lá. É só colocar para tocar que as pessoas vão saber (risos). Estou solteira, casada comigo. Se eu soubesse como eu sou boa já tinha me casado há mais tempo. Fui me descobrindo aos poucos. Não preciso mais estar com ninguém para ser feliz.
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