AGENDA CULTURAL

26.2.21

O que diz o livro do General Villas Bôas - Natália Viana


Pauta Pública. No governo Bolsonaro, militares ocupam um número recorde de cargos e o silêncio foi trocado por falas, tuítes, vídeos de apoio, notas de repúdio e muito flerte com o passado que ainda não foi tirado a limpo. O jornalista Fabio Victor fala como a ascensão dos militares aconteceu e aonde isso pode parar. Fabio, que trabalhou na revista piauí e na Folha de S.Paulo durante 20 anos, além de ter sido repórter especial e correspondente em Londres, traz ainda um panorama a partir da cobertura que faz do tema. Ouça já.     


Muito tem se falado sobre a revelação que o ex-comandante do Exército fez na longa entrevista que deu a Celso Castro, publicada em livro, sobre os bastidores do Tweet sobre o julgamento do habeas corpus de Lula, que (re)inaugurou a era do emparedamento light do STF na política brasileira.  

Mas “Conversa com o Comandante”, da editora FGV, é muito mais rico do que isso. Li-o essa semana como parte da pesquisa para um livro que estou escrevendo sobre a atuação dos militares em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLOs) e que vai sair em meados do ano pela Editora Objetiva. E queria chamar a atenção para alguns trechos de enorme relevância histórica, que esclarecem o papel do próprio Villas Bôas e seu grupo na construção do governo Bolsonaro. 

Por exemplo: o general, que fazia parte do Alto Comando do Exército durante a Comissão Nacional da Verdade, realizada pelo governo Dilma Rousseff, chama a CNV de uma “facada nas costas” da presidente, cujo impeachment ele discutiu serenamente com o vice em jantares privados.  

Em que pese a CNV, órgão extraordinário ligado diretamente à presidência, ter recomendado um pedido de desculpas formal das Forças Armadas pelas violações cometidas pela ditadura, Villas Boas explica que seu grupo decidiu simplesmente não pedir desculpas. “Nós estudamos detalhadamente o desenvolvimento dos processos em andamento na Argentina e no Chile. Deles extraímos duas conclusões relevantes. A sequência dos eventos no Brasil estava repetindo o que se cumpriu naqueles países, desde as indenizações até a revisão da lei da Anistia, passando pela Comissão da Verdade. Em um e outro, houve comandantes que apresentaram pedidos de desculpas, no pressuposto de que com essa atitude estariam colocando um ponto final nos processos. Pelo contrário: esses pedidos foram considerados confissão de culpa, motivando a intensificação dos procedimentos de investigação. Internamente, nos respectivos Exércitos, isso afetou seriamente a autoestima institucional”. 

Em outro trecho, ele revela seu dedo na composição do Ministério bolsonarista. Foi Villas Bôas quem decidiu que Heleno deveria ser ministro-chefe do GSI, cargo anteriormente ocupado pelo seu amigo de infância Sérgio Etchegoyen. “Presidente, nós não queremos o Heleno da Defesa”, disse o então comandante do Exército ao presidente recém-eleito. “Eu avaliava que seria mais proveitoso ele ocupar um cargo que proporcionasse a convivência diária com o presidente”, detalha. Villas Bôas ainda ofereceu um nome para a Defesa, o almirante Leal Ferreira – a quem ele mesmo convidou por telefone. Ferreira negou o convite, e então o comandante também atuou na escolha do atual nome, o general Fernando de Azevedo. Antes do governo Temer, era impensável um militar assumir o Ministério da Defesa, criado justamente para consolidar o controle civil das Forças Armadas. Agora, que o próprio comandante do Exército saia a fazer ligações para convidar alguém para o cargo, não há nem palavras para nomear.    

Eduardo Villas Bôas, enfrentando uma doença degenerativa bastante severa, atado a uma cadeira de rodas e respirando por aparelhos, deixou o comando do Exército em 11 de janeiro de 2019, pouco depois de Jair Bolsonaro assumir. Mas, antes disso, o comandante fez questão de mexer os pauzinhos pessoalmente para satisfazer um antigo sonho do ex-capitão: graduar-se na Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais (EsAO). 

Eu explico. Bolsonaro estudava na EsAO quando bolou um plano estapafúrdio de explodir bombas em quartéis do Rio de Janeiro, em protesto por aumento de salários. A revista Veja revelou o plano e deu o nome do santo, que virou alvo de investigação interna e não conseguiu se formar na ESAO. Diz Villas Bôas: “Bolsonaro concluiu o ano letivo, o que constatei quando no comando da ESAO; ele me pediu para verificar o que constava a respeito. Depois de eleito presidente, solicitou que recebesse  o diploma, o que foi feito em uma cerimônia simples”.

Fuçando na internet encontrei um vídeo da cerimônia, realizada dois meses antes da posse. Bolsonaro recebeu simbolicamente o diploma diretamente do próprio comandante do Exército – ele não pôde segurar o documento por causa da doença degenerativa – e, emocionado, garantiu que ele não estaria sozinho na presidência, mas com mais pessoas, “em grande parte das Forças Armadas”. Ele promete, diante de Villas Bôas, que pretende realizar uma “guinada do nosso país ao rumo daquilo que não devia ter saído, naquele período de 20 e poucos anos atrás”. Diz isso sob aplausos e comoção dos oficiais ali presentes.

Mais do que fatos passados, esses eventos demonstram que o governo Bolsonaro é fruto de um pensamento bem elaborado dentro de um grupo de generais influentes entre seus pares. Como eu tenho argumentado, trata-se de um governo de militares e não apenas de um governo que tem uma ala militar. Tema esse, aliás, do excelente papo que Andrea Dip e Thiago Domenici tiveram com o jornalista Fabio Victor, que cobriu como ninguém  os avanços da caserna nos últimos anos. Está nesta edição do Pauta Pública, o nosso podcast quinzenal.

Natalia Viana, co-diretora da Agência Pública 

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