AGENDA CULTURAL

6.3.14

Todo marketing político é baiano?

15/02/2014 - revista B+
A incrível safra de marqueteiros made in Bahia
Que água beberam os baianos que ditam os rumos da política no país?


por Geraldo Machado

Sempre me indaguei quais motivos levam algumas épocas, ainda que isso aconteça espaçadamente, a serem tão pródigas em produzir safras exuberantes de talentos, gerando em torno de si um ambiente de extrema criatividade. Ao longo de grandes estirões do tempo, a coisa parece estacionar numa mesmice, a qualidade do impulso criativo tende ao medíocre e o saldo da produção coletiva resulta repetitivo. Na música, na literatura, no cinema ou nas artes visuais, a norma se estabelece em termos banais, os modelos se eternizam esticandose em permutas estéreis, e, muitas vezes, um certo “maneirismo” decadente toma o lugar da verdadeira criação. Entretanto, como sintetizou o poeta baiano Caetano Veloso: “É incrível a força que as coisas parecem ter quando elas precisam acontecer”. E as coisas vão emergindo de repente, em metamorfoses ambulantes. Esses momentos especiais geralmente decorrem de uma forte liderança, ou de uma conjugação de energias coletivas, em simultaneidade, produzindo uma espécie de caldo cultural não muito apercebido, até que eclodem. A brotação é muitas vezes acelerada por passagens críticas de rupturas ou fruto da quentura de certos momentos históricos que fazem as vezes de estufa, forja ou detonador.

“Há alguns anos me peguei muito surpreso ao me dar conta de que boa parte do PIB brasileiro no marketing político estava nas mãos de um punhado de baianos. As maiores e mais poderosas agências de criação do país eram capitaneadas por conterrâneos, àquela altura nacionalmente conhecidos. Basta lembrar os nomes de João Santana, Nizan Guanaes, Duda Mendonça, Geraldo Walter, Sérgio Amado, Fernando Barros, Cláudio Barreto, Carlos Sarno, Fernando Passos, Sidônio Palmeira, Edinho Barbosa, José Roberto Berne, Alexandre Guimarães, Antônio Miranda, João Silva, Rodrigo Sá Menezes, entre tantas outras figuras prestigiosas no universo da criação, nomes que fazem saltar diante de nossos olhos a constatação de que alguma coisa muito incrível se passou por aqui por essas bandas, bem debaixo de nossos inadvertidos narizes. O fato é que vários desses profissionais do marketing político passaram a dominar a cena nacional.”

Mas como teriam sido criadas as bases de um berçário tão especial? De que é feita a placenta criativa que gera tantos filhos geniais? Que misteriosa incubadora foi essa, que adubos, que fertilizantes, produziram uma geração tão especial? Qual foi o ambiente político-cultural que lhes foi propício? Não tinha respostas prontas, minha postura era de investigação e perplexidade diante desse mistério difuso.

O ser humano constitui a sua grandeza através da oposição, muitas vezes, na melhor das hipóteses, passado um tempo de confronto, até que atinja a transcendência dos contrários. A compreensão da lógica oculta desses conflitos, o deciframento das regras que conduzem as pesadas jogadas da disputa de poder, foi sempre tarefa complexa, deslindada por poucas mentes insubmissas e iluminadas. As artimanhas e brutalidades do príncipe, articuladas por Maquiavel, resistem a muitas estações e apontam para algumas estruturas permanentes sob a aparência mutável dos acontecimentos.

Após anos de luta surda e resistente contra o autoritarismo da ditadura militar, já em seus estertores, o ideário nacional pulsava pela democracia. Com a volta das eleições livres, o restabelecimento da normalidade democrática fez com que surgisse uma nova categoria profissional, subsidiária dos publicitários, os chamados marqueteiros, profissionais antenados, capazes de interpretar os meandros sinuosos dos desejos e da sensibilidade popular para estabelecer uma linguagem capaz de induzir o povo a votar em seus candidatos. Os políticos passaram a ser compreendidos também como produtos, sua embalagem não menos importante que o seu suposto conteúdo. O fenômeno produziu uma quantidade enorme de profissionais que iam se especializando no assunto, inventando o caminho ao caminhar.


Nesse período, durante os anos 70, 80 e 90, nosso estado vivia, portanto, como todo o Brasil, um laboratório de intensas experimentações com novas formas de propaganda política, muito embora aqui na Bahia ele apresentasse características absolutamente particulares. O resultado foi um conjunto de aprendizados e experiências que acabou desaguando na criação de uma espécie de know-how único de marketing político, com tintas e temperos bem baianos, e que não apenas surpreendeu o Brasil, como foi até exportado, com sucesso, para vários lugares, especialmente na África e América Latina.

Durante o citado período, a Bahia foi palco de acirradas batalhas políticas. O estado já contava, a essa altura, com uma base publicitária muito ativa. O carlismo predominava soberano sobre outras forças políticas. Desse forte tensionamento, foram brotando novas fórmulas para capturar a atenção dos eleitores. Uma nova cultura de marketing político, que renovava inteiramente as relações eleitorais, parte importante das ciências políticas, começava a estabelecer e desenvolver suas bases. Lembremos que o próprio ACM liderava boa parte da criação de suas campanhas. Muitos publicitários reconhecem que ele foi responsável direto por um sem-número de inovações. Por exemplo, é bem provável que nenhum outro líder baiano tenha compreendido e incentivado ingredientes da cultura como parte integrante, indissociável, da política. Foi a partir daí que se deu a ocupação de espaços no coração das festas populares ou religiosas; o uso de símbolos da baianidade; a composição de jingles dançantes de ótima qualidade; a criação dos showmícios, que concentravam e alegravam as massas nos comícios, onde bonecos gigantes, divertidos, passeavam no meio do povo; programas de rádio criativos varriam todo o estado; garotas com pernas transbordando de minissaias balançavam suas bandeiras coloridas pelas ruas da cidade; carreatas com trios elétricos; sacanagens e mais sacanagens circulavam de todas as formas, dando ao eleitorado uma quentura de emoção e entusiasmo que só as lutas de boxe são capazes de evocar. As oposições eram exacerbadamente críticas e aguerridas, não deixavam passar nada. Enfim, travava-se uma guerra aberta pela disputa do imaginário popular, em clima de zorra total. Bem diferente dos dias de hoje, quando, de um lado, a passividade impera e engessa e, por outro, na direção oposta - salvo honrosas e raríssimas exceções - toma conta de tudo certo esgotamento, um vazio conceitual de ideias, um apagão de massa crítica.

Naquela época, a feroz competição tinha como matéria-prima exatamente a imaginação, a invenção de fórmulas originais que seduzissem o eleitorado. No calor e no correr da contenda é que se moldam os talentos. O interessante é que esse laboratório baiano proporcionou um aprendizado coletivo: muitos profissionais da área da criação dele se aproveitaram para se reciclar, praticamente todos ao mesmo tempo, na difícil arte de interpretar e reorientar com estratégias criativas os desejos dos eleitores durante as campanhas. Podemos afirmar, sem risco de errar, que nasceu aqui, assim, espontaneamente, um tipo singular de escola de marketing político, rigorosamente made in Bahia.

Fernando Passos chama a atenção para um elemento sutil que induz, em parte, o segredo dessa especificidade baiana. Quase imperceptível, pertencente ao universo da subjetividade, marca, porém, de forma muito particular as posturas e os comportamentos dos nossos marqueteiros. O approach local à política sempre foi guiado por uma percepção muito sensorial. Ao contrário dos marqueteiros “sudestinos”, que são extremamente pragmáticos e baseiam suas percepções em pesquisas sociológicas racionais, objetivas e frias, os profissionais baianos percebem a realidade de uma forma mais maleável, capturam e levam em conta emoções e latências no ar, coisas como aromas, sons, brilho no olhar, sabores. Daí por que são os baianos os mais calorosos, e com essa forma intuitiva conseguem alta eficiência, uma entrega perfeita em suas mensagens.


"O interessante é que esse laboratório baiano proporcionou um aprendizado coletivo: muitos profissionais da área da criação (...) aproveitaram para se reciclar"

Muitos entre esses publicitários migraram, a seguir, para São Paulo e Brasília, onde ocuparam os principais nichos do marketing político no Brasil, decisivos para as disputas pelas mais altas cúpulas do poder. São hoje disputados, indistintamente, por todos os grandes partidos; aclamados e reconhecidos como os melhores profissionais do gênero no país. Eles continuam a ditar boa parte das estratégias que vêm elegendo presidentes da República, governadores, prefeitos e toda classe de políticos por esse Brasil afora, e fora do Brasil. Além de desempenharem secundariamente o papel de verdadeiros escudeiros do sistema imunológico de defesa em torno da imagem dos candidatos.


Realmente, não tenho ainda absoluta certeza de como foram produzidas tais safras extraordinárias de marqueteiros talentosos na Bahia, nem como se processou essa intensa exportação de profissionais superexperts em política. Sou um observador amador na matéria, não proponho certezas ou modelos de análise matemáticos ou comparativos, mas a hipótese que norteia meu pensamento é a de que os tensionamentos, os fortes enfrentamentos, como aqueles havidos nos embates políticos das duas ou três últimas décadas, são, sim, essenciais, vitais para a democracia, pois geram avanços na criatividade e na inovação, e acabam promovendo evolução nos costumes políticos. Estagnação e conformismo são anestesias da criatividade verdadeira e coveiros da inovação. Quando o contraditório desaparece e quando um “pensamento único” estabelece uma hegemonia inconteste, como parece ser o caso dos nossos dias, não apenas o jornalismo e a publicidade, mas também a própria política, a democracia e a vida cultural se deitam a hibernar nas câmaras frias da mediocridade.

Colaboração: Antônio Miranda, marqueteiro conhecido pelas bandas de Araçatuba-SP

Um comentário:

HAMILTON BRITO... disse...

Explicação mais que simples.
Remember os gregos, sobretudo os filósofos. Cada um deles tinha , pelo menos , 50 empregados. Tinham tempo para pensar, filosofar. Com o baiano acontece a mesma coisa. A Bahia é uma Atenas contemporâneo, um dos maiores focos de irradiação da cultura grega. Baiano é " forgado " por natureza. Todo sujeito que não tem muita pressa ´é criativo.