15/02/2014 - revista B+
A incrível safra de marqueteiros made in Bahia
Que água beberam os baianos que ditam os rumos da política
no país?
por Geraldo Machado
Sempre me indaguei quais motivos levam algumas épocas, ainda
que isso aconteça espaçadamente, a serem tão pródigas em produzir safras
exuberantes de talentos, gerando em torno de si um ambiente de extrema
criatividade. Ao longo de grandes estirões do tempo, a coisa parece estacionar
numa mesmice, a qualidade do impulso criativo tende ao medíocre e o saldo da
produção coletiva resulta repetitivo. Na música, na literatura, no cinema ou
nas artes visuais, a norma se estabelece em termos banais, os modelos se
eternizam esticandose em permutas estéreis, e, muitas vezes, um certo
“maneirismo” decadente toma o lugar da verdadeira criação. Entretanto, como
sintetizou o poeta baiano Caetano Veloso: “É incrível a força que as coisas
parecem ter quando elas precisam acontecer”. E as coisas vão emergindo de
repente, em metamorfoses ambulantes. Esses momentos especiais geralmente
decorrem de uma forte liderança, ou de uma conjugação de energias coletivas, em
simultaneidade, produzindo uma espécie de caldo cultural não muito apercebido,
até que eclodem. A brotação é muitas vezes acelerada por passagens críticas de
rupturas ou fruto da quentura de certos momentos históricos que fazem as vezes
de estufa, forja ou detonador.
“Há alguns anos me peguei muito surpreso ao me dar conta de
que boa parte do PIB brasileiro no marketing político estava nas mãos de um
punhado de baianos. As maiores e mais poderosas agências de criação do país
eram capitaneadas por conterrâneos, àquela altura nacionalmente conhecidos.
Basta lembrar os nomes de João Santana, Nizan Guanaes, Duda Mendonça, Geraldo
Walter, Sérgio Amado, Fernando Barros, Cláudio Barreto, Carlos Sarno, Fernando
Passos, Sidônio Palmeira, Edinho Barbosa, José Roberto Berne, Alexandre
Guimarães, Antônio Miranda, João Silva, Rodrigo Sá Menezes, entre tantas outras
figuras prestigiosas no universo da criação, nomes que fazem saltar diante de
nossos olhos a constatação de que alguma coisa muito incrível se passou por
aqui por essas bandas, bem debaixo de nossos inadvertidos narizes. O fato é que
vários desses profissionais do marketing político passaram a dominar a cena
nacional.”
Mas como teriam sido criadas as bases de um berçário tão
especial? De que é feita a placenta criativa que gera tantos filhos geniais? Que
misteriosa incubadora foi essa, que adubos, que fertilizantes, produziram uma
geração tão especial? Qual foi o ambiente político-cultural que lhes foi
propício? Não tinha respostas prontas, minha postura era de investigação e
perplexidade diante desse mistério difuso.
O ser humano constitui a sua grandeza através da oposição,
muitas vezes, na melhor das hipóteses, passado um tempo de confronto, até que
atinja a transcendência dos contrários. A compreensão da lógica oculta desses
conflitos, o deciframento das regras que conduzem as pesadas jogadas da disputa
de poder, foi sempre tarefa complexa, deslindada por poucas mentes insubmissas
e iluminadas. As artimanhas e brutalidades do príncipe, articuladas por
Maquiavel, resistem a muitas estações e apontam para algumas estruturas
permanentes sob a aparência mutável dos acontecimentos.
Após anos de luta surda e resistente contra o autoritarismo
da ditadura militar, já em seus estertores, o ideário nacional pulsava pela
democracia. Com a volta das eleições livres, o restabelecimento da normalidade
democrática fez com que surgisse uma nova categoria profissional, subsidiária
dos publicitários, os chamados marqueteiros, profissionais antenados, capazes
de interpretar os meandros sinuosos dos desejos e da sensibilidade popular para
estabelecer uma linguagem capaz de induzir o povo a votar em seus candidatos.
Os políticos passaram a ser compreendidos também como produtos, sua embalagem
não menos importante que o seu suposto conteúdo. O fenômeno produziu uma quantidade
enorme de profissionais que iam se especializando no assunto, inventando o
caminho ao caminhar.
Nesse período, durante os anos 70, 80 e 90, nosso estado
vivia, portanto, como todo o Brasil, um laboratório de intensas experimentações
com novas formas de propaganda política, muito embora aqui na Bahia ele
apresentasse características absolutamente particulares. O resultado foi um
conjunto de aprendizados e experiências que acabou desaguando na criação de uma
espécie de know-how único de marketing político, com tintas e temperos bem
baianos, e que não apenas surpreendeu o Brasil, como foi até exportado, com
sucesso, para vários lugares, especialmente na África e América Latina.
Durante o citado período, a Bahia foi palco de acirradas
batalhas políticas. O estado já contava, a essa altura, com uma base
publicitária muito ativa. O carlismo predominava soberano sobre outras forças
políticas. Desse forte tensionamento, foram brotando novas fórmulas para
capturar a atenção dos eleitores. Uma nova cultura de marketing político, que
renovava inteiramente as relações eleitorais, parte importante das ciências
políticas, começava a estabelecer e desenvolver suas bases. Lembremos que o
próprio ACM liderava boa parte da criação de suas campanhas. Muitos
publicitários reconhecem que ele foi responsável direto por um sem-número de
inovações. Por exemplo, é bem provável que nenhum outro líder baiano tenha
compreendido e incentivado ingredientes da cultura como parte integrante,
indissociável, da política. Foi a partir daí que se deu a ocupação de espaços
no coração das festas populares ou religiosas; o uso de símbolos da baianidade;
a composição de jingles dançantes de ótima qualidade; a criação dos showmícios,
que concentravam e alegravam as massas nos comícios, onde bonecos gigantes,
divertidos, passeavam no meio do povo; programas de rádio criativos varriam
todo o estado; garotas com pernas transbordando de minissaias balançavam suas
bandeiras coloridas pelas ruas da cidade; carreatas com trios elétricos;
sacanagens e mais sacanagens circulavam de todas as formas, dando ao eleitorado
uma quentura de emoção e entusiasmo que só as lutas de boxe são capazes de
evocar. As oposições eram exacerbadamente críticas e aguerridas, não deixavam
passar nada. Enfim, travava-se uma guerra aberta pela disputa do imaginário
popular, em clima de zorra total. Bem diferente dos dias de hoje, quando, de um
lado, a passividade impera e engessa e, por outro, na direção oposta - salvo
honrosas e raríssimas exceções - toma conta de tudo certo esgotamento, um vazio
conceitual de ideias, um apagão de massa crítica.
Naquela época, a feroz competição tinha como matéria-prima
exatamente a imaginação, a invenção de fórmulas originais que seduzissem o
eleitorado. No calor e no correr da contenda é que se moldam os talentos. O
interessante é que esse laboratório baiano proporcionou um aprendizado
coletivo: muitos profissionais da área da criação dele se aproveitaram para se
reciclar, praticamente todos ao mesmo tempo, na difícil arte de interpretar e
reorientar com estratégias criativas os desejos dos eleitores durante as
campanhas. Podemos afirmar, sem risco de errar, que nasceu aqui, assim,
espontaneamente, um tipo singular de escola de marketing político,
rigorosamente made in Bahia.
Fernando Passos chama a atenção para um elemento sutil que
induz, em parte, o segredo dessa especificidade baiana. Quase imperceptível,
pertencente ao universo da subjetividade, marca, porém, de forma muito
particular as posturas e os comportamentos dos nossos marqueteiros. O approach
local à política sempre foi guiado por uma percepção muito sensorial. Ao
contrário dos marqueteiros “sudestinos”, que são extremamente pragmáticos e
baseiam suas percepções em pesquisas sociológicas racionais, objetivas e frias,
os profissionais baianos percebem a realidade de uma forma mais maleável,
capturam e levam em conta emoções e latências no ar, coisas como aromas, sons,
brilho no olhar, sabores. Daí por que são os baianos os mais calorosos, e com
essa forma intuitiva conseguem alta eficiência, uma entrega perfeita em suas
mensagens.
"O interessante é que esse laboratório baiano
proporcionou um aprendizado coletivo: muitos profissionais da área da criação
(...) aproveitaram para se reciclar"
Muitos entre esses publicitários migraram, a seguir, para
São Paulo e Brasília, onde ocuparam os principais nichos do marketing político
no Brasil, decisivos para as disputas pelas mais altas cúpulas do poder. São
hoje disputados, indistintamente, por todos os grandes partidos; aclamados e
reconhecidos como os melhores profissionais do gênero no país. Eles continuam a
ditar boa parte das estratégias que vêm elegendo presidentes da República,
governadores, prefeitos e toda classe de políticos por esse Brasil afora, e
fora do Brasil. Além de desempenharem secundariamente o papel de verdadeiros
escudeiros do sistema imunológico de defesa em torno da imagem dos candidatos.
Realmente, não tenho ainda absoluta certeza de como foram
produzidas tais safras extraordinárias de marqueteiros talentosos na Bahia, nem
como se processou essa intensa exportação de profissionais superexperts em
política. Sou um observador amador na matéria, não proponho certezas ou modelos
de análise matemáticos ou comparativos, mas a hipótese que norteia meu
pensamento é a de que os tensionamentos, os fortes enfrentamentos, como aqueles
havidos nos embates políticos das duas ou três últimas décadas, são, sim,
essenciais, vitais para a democracia, pois geram avanços na criatividade e na
inovação, e acabam promovendo evolução nos costumes políticos. Estagnação e
conformismo são anestesias da criatividade verdadeira e coveiros da inovação.
Quando o contraditório desaparece e quando um “pensamento único” estabelece uma
hegemonia inconteste, como parece ser o caso dos nossos dias, não apenas o
jornalismo e a publicidade, mas também a própria política, a democracia e a
vida cultural se deitam a hibernar nas câmaras frias da mediocridade.
Colaboração: Antônio Miranda, marqueteiro conhecido pelas bandas de Araçatuba-SP
Colaboração: Antônio Miranda, marqueteiro conhecido pelas bandas de Araçatuba-SP
Um comentário:
Explicação mais que simples.
Remember os gregos, sobretudo os filósofos. Cada um deles tinha , pelo menos , 50 empregados. Tinham tempo para pensar, filosofar. Com o baiano acontece a mesma coisa. A Bahia é uma Atenas contemporâneo, um dos maiores focos de irradiação da cultura grega. Baiano é " forgado " por natureza. Todo sujeito que não tem muita pressa ´é criativo.
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