Alexandre Padilha*
Andressaa Urach e o filho Arthur |
Nem no meu maior devaneio SUSista esperava uma manchete do
tipo: "Hospital do SUS salva modelo com complicações em procedimentos
estéticos realizados em clínica privada". Ou " Ao contrário de Miami,
modelo não precisou pagar antecipadamente por vida salva em Hospital do
SUS". Mas é preciso falarmos alto para que esta, uma das contradições da
relação entre dois sistemas de saúde, público e privado, não passe
desapercebida. Pelo tamanho atual dos dois sistemas no Brasil, é fundamental
que as contradições sejam cada vez mais enfrentadas, sob risco de
inviabilizarmos o projeto de um sistema público universal com qualidade e
reforçarmos a iniquidade também no sistema privado.
O Brasil é o único país do mundo, com mais de 100 milhões de
habitantes, que busca oferecer a sua população o acesso universal a saúde. Nem
mesmo as novas Constituições da América Latina, apelidadas de bolivarianas,
foram tão ousadas:" Saúde é DIREITO de todos e DEVER do Estado". Ao
mesmo tempo, temos cerca de 50 milhões de usuários de planos de saúde médico-hospitalares
(eram 30 milhões em 2003) e 70 milhões, incluindo planos odontológicos. Os
números de ambos os sistemas impressionam ministros da Saúde e investidores de
todo o mundo. O caso similar a modelo, pacientes do sistema privado recorrerem
ao SUS, por falta de cobertura ou por situação de emergência é muito mais comum
do que se imagina. Desde 2011, quando assumi o Ministério da Saúde, implantamos
um conjunto de mudanças de gestão para identificar quando isso ocorre. Com
elas, busca-se garantir o ressarcimento do plano de saúde ao SUS, porque é dele
que se deve cobrar, não do paciente. Desde então, as operadoras são obrigadas a
emitir um número de cartão SUS para todo usuário de plano, permitindo ao
Ministério este rastreamento. Você que me lê e é usuário de plano de saúde tem
número de cartão SUS e talvez não saiba. De lá para cá, foram recordes
sucessivos de recuperação de recursos para o SUS: em 3 anos, mais do que em
toda história da Agência Nacional de Saúde (ANS), criada em 2000. Mas muito precisa-se
avançar nessa cobrança, e o governo Dilma prosseguiu em novas medidas em
relação a isso. O motivo mais comum de internação no SUS por detentores de
planos de saúde, acreditem: parto. Recentemente, correu as redes a notícia de
turista canadense, que teve parto de urgência no Havaí e, quando voltou para
casa, recebeu conta de US$2,5 milhões para pagar.
Poderia citar outros exemplos em que somos usuários do SUS
sem nem reconhecermos. Desde 2001, o Brasil é recordista mundial de
transplantes em hospitais públicos. O SAMU salva vidas sem perguntar o plano ou
exigir cheque. A vigilância sanitária estabelece regras e fiscaliza a comida
dos restaurantes, inclusive os chiques, de preços estratosféricos. As mesmas
analisam risco a saúde de equipamentos, medicamentos, bebidas vendidas em
massa, cosméticos e produtos de estética. O próprio uso do HIDROGEL já estava
condenado pela Anvisa, evitando novos casos como o de Andressa Urach.
Estas contradições da convivência de dois sistemas públicos
e privado impactam nos maiores desafios atuais de sobrevivência do projeto SUS:
o seu subfinanciamento e a iniquidade no acesso aos serviços. E criam um
ambiente, no mercado de trabalho e no complexo industrial da saúde, que
influencia fortemente outro fator decisivo para uma saúde pública humanizada: a
formação e a postura dos profissionais de saúde.
Há um consenso suprapartidário no Brasil: a saúde pública é
subfinanciada. A divergência é como resolver este fato. Desde o final da CPMF,
que retirou R$40 bilhões anuais do orçamento do Ministério da Saúde, o Brasil
investe na saúde pública em média 3 vezes per capta menos do que parceiros sul
americanos como Chile, Argentina e Uruguai; cerca de 7 a 8 vezes do que
sistemas nacionais europeus recentes como Portugal e Espanha, cerca de 11 vezes
menos do que o tradicional Sistema Nacional Inglês. Ao mesmo tempo, segundo
dados recentes publicados pelo IPEA, a isenção fiscal referente aos planos de
saúde no Brasil chegou a cerca de R$ 18 bilhões. Ou seja, o mesmo Estado que
não garante recursos suficientes para prover um sistema público para todos,
co-financia a alternativa para uma parcela da população, que se vê obrigada a
pagar valores expressivos para ter acesso a saúde. Além disso, o mesmo Estado
suporta o atendimento de vários procedimentos que de alguma forma não são
cobertos pelos planos. A incorporação tecnológica, o envelhecimento da
população e o impacto dos acidentes automobilísticos e da violência urbana nos
custos dos serviços de emergência e reabilitação, transformam esta equação, já
precária, em insustentável. Não a toa, a melhoria da saúde é a primeira demanda
da população e ter um plano de saúde, o sonho da nova classe trabalhadora. No
último período, dois avanços importantes do governo Dilma foram conquistados: a
regra que estabelece quanto União, estados e municípios são obrigados a
investir em saúde e a vinculação de um percentual dos recursos do pré-sal. Mas
precisamos avançar sempre.
As opções para o financiamento da saúde são uma das
expressões da desigualdade não tão revelada no nosso país. É mais do que hora
de todos nós, que colocamos a redução das desigualdades como centro de um
projeto político, enfrentá-las. Se não o fizermos, perderemos a capacidade de
interlocução com segmentos expressivos da classe trabalhadora, que sofre com a
baixa qualidade e os custos dos sistemas públicos e privados. Temos que ir para
ofensiva no diálogo com a sociedade e explicitar que ampliar o financiamento a
saúde passa, necessariamente, por inverter o sistema tributário injusto com o
qual convivemos. Não é razoável, em um país como o Brasil, que alguém, ao
receber R$ 60 mil em 12 meses de trabalho, paga 27% de Imposto de Renda,
enquanto alguém que receber R$ 2 milhões de herança, praticamente não será
taxado. Em países como EUA (30-40%) França (45%), Alemanha, Japão (50%) as
alíquotas para heranças seriam outras. Estudos de 1999 mostram que imposto
sobre fortunas no Brasil, entre 0,8% a 1,2%, em fortunas acima de R$ 1 milhão,
renderiam uma arrecadação de cerca de 1,7% do PIB, mais do que era obtido pela
CPMF.
A formação e a conduta profissional é o outro território
invadido por estas relações dos dois sistemas público e privado. A batalha do
Mais Médicos, as denúncias recentes de abuso sexual e preconceito por alunos de
medicina nas faculdades e a atitude absurda de algumas lideranças condenarem a
campanha antirracismo organizada pelo Ministério da Saúde só explicitaram o
arcabouço de valores que influencia a formação dos nossos futuros
profissionais, de ambos os sistemas. No cerne, há duas correias de tensão, que
se alimentam mutuamente. Por um lado, um ideário liberal de exercício da
profissão, que alimenta, desde os primeiros dias de graduação, uma não aposta
em um sistema público de qualidade e o desrespeito em relação aos seus usuários:
pobres, mulheres, negros, homossexuais e "gente não diferenciada".
Por outro, um mercado dinâmico e lucrativo de tecnologia, órteses, próteses,
equipamentos, fármacos, serviços, publicações, congressos que financia uma
visão cada vez ultra-especializante da formação e da atuação em saúde. Não a
toa, a investigação iniciada pelo Ministério da Saúde, em Março de 2013 que
teve luz recente graças a matéria de TV, e o Mais Médicos incendiaram o debate,
questionaram paradigmas e condutas. Não há nenhum profissional de saúde no
Brasil, nem aquele que se especializou em realizar procedimentos estéticos em
clínicas privadas, que não tenha dependido do SUS para se formar. Nos meus
tempos de estudante de medicina cunhamos a frase: "chega de aprender nos pobres
para só querer cuidar dos ricos"
Esta realidade desafiadora nos abre uma grande oportunidade.
O entendimento de que um sistema público dessa dimensão, em um país tão
desigual e diverso como o nosso, gera plataforma continental para um amplo
complexo de indústria e serviços no campo da saúde. O Brasil será mais rico e
menos desigual se pudermos articular as duas perspectivas. Não será possível
sustentar um sistema público de saúde sem crescimento econômico e para tal é
necessário colocarmos os 2 pés no universo da inovação tecnológica. Ao mesmo
tempo, o complexo de indústrias e de serviços da saúde não sobrevive no Brasil
se desprezar o mercado interno impulsionado pelo acesso a um sistema público,
cada vez mais tecnológico. Usar o poder de compra do estado para fortalecer um
setor econômico que gere empregos e inovação tecnológica no Brasil teve, na
Saúde, a sua experiência recente mais exitosa. Ela foi calcada de um lado na
ousadia, ao estabelecer o interesse público e nacional como o rumo a ser
seguido, e previsibilidade, regras que estimulassem o setor privado a fazer
este jogo de interesse para o Brasil. Beber dessa experiência é fundamental
para fortalecermos a Saúde como um impulso, e não um peso a carregar, na agenda
de desenvolvimento do Brasil.
*Alexandre Padilha, médico, 43 anos, ex-Ministro da Coordenação Política de Lula e Saúde de Dilma e candidato a governador de SP em 2014
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