AGENDA CULTURAL

6.3.15

Nem morena, nem mulata

março 5, 2015 - Portal Fórum 
Segundo o IBGE, no Brasil, 7,6% da população se considera de cor preta e 43,1% se considera de cor parda. Entre eufemismos como “moreno”, “mulato” e “cor de jambo”, como delimitar quem é, de fato, negro, mesmo que tenha a pele mais clara?
Por Jarid Arraes
A cultura brasileira tem uma forma complexa de lidar com questões raciais. Por causa da miscigenação, as pessoas aceitam como regra o discurso do ser “moreno”, recorrendo a outros eufemismos para adjetivar uma cor de pele que não é branca: cor de bombom, chocolate, cor de jambo, mulato, entre outras variações e apelidos. É difícil se declarar negro – primeiramente, pelo estigma social causado pelo racismo; depois, porque há a percepção de que somente uma pessoa de pele muito escura é realmente negra.
Apesar disso, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), hoje mais de metade da população brasileira se autodeclara como “negra”. Na prática, quer dizer que 7,6% se considera de cor preta e 43,1% se considera de cor parda; lamentavelmente, “pardo” não diz muita coisa sobre consciência política a respeito do racismo ou sobre negritude. Há pessoas loiras e de olhos azuis que se declaram pardas, assim como muitas pessoas de pele escura e cabelo crespo. Como então delimitar quem, de fato, é negro? E como despertar nas pessoas brasileiras o interesse de ir mais a fundo nos debates sobre racismo?
“Descobri que sou negra”
Vanessa Rodrigues (Foto: Arquivo pessoal)
Vanessa Rodrigues (Foto: Arquivo pessoal)
A jornalista Vanessa Rodrigues, a professora Bianca Santana e a militante Ariane Cor são integrantes da ONG feminista Casa de Lua, que promove o Círculo de Mulheres Negras. O que elas três relatam e possuem em comum é também o retrato de muitas outras mulheres negras que passaram por longos processos de autorreflexão e conflito até que se descobrissem e se reconhecessem como negras – e não como “morenas” ou “mulatas”.
Rodrigues inicia seu relato levantando a questão da miscigenação: “Minha mãe tem uma aparência mais indígena, de pele morena e cabelos lisos. Já o meu pai, filho de pai branco e mãe negra, nasceu com a pele mais escura entre os irmãos e, certamente, foi o que mais sofreu racismo”, introduz. “Nasci com pele e cabelos claros. Com isso, fui lida como branca durante a minha infância. Mas acredito que o fato de ter traços negros – nariz, boca, cabelos cacheados – provocava um estranhamento e uma confusão nas pessoas, nos meus pais e parentes, por exemplo”.
Segundo Vanessa, embora a cor da sua pele a embranquecesse, seus traços a enegreciam. “Então, comecei a ser estimulada a frequentar salão de beleza desde muito novinha, pra alisar os cabelos, por exemplo. As pessoas faziam referência ao meu nariz, inventavam apelidos, apertavam com os dedos pra ‘afilá-lo’, sugeriam usar pregador de roupa pra isso”, relata.
No entanto, ao morar fora do Brasil, Rodrigues começou a se enxergar mais como não branca, lembrando-se também de situações racistas – embora não identificasse como tais na ocasião. “Fui seguida em lojas, já tive que abrir bolsa em saída de loja, já fui abordada por seguranças querendo conferir se eu tinha nota sobre o produto comprado, fui mal atendida muitas vezes em lojas caras de shopping center e coisas assim”. Tudo isso só viria como uma questão racial mais tarde, depois de muita leitura e reflexões. “Também quando as pessoas começaram a se referir a mim como morena, quando as pessoas começaram a fazer referência à cor da minha pele pra me descrever e me definir. Isso também acabou ajudando a me ver, a me reconhecer”, acrescenta.
Além disso, os laços familiares de Vanessa foram um ponto forte em sua autoidentificação racial. “O fato de ter uma avó e madrinha negras foi me deixando mais sensível e mais atenta à questão. Sem falar das histórias vividas pelo meu pai, que sempre me machucaram muito ao ouvir, porque sabia o quanto tinham doído nele”, conta.
Em meio ao seu processo de autoidentificação e reconhecimento, Rodrigues teve dois filhos – “dos quais o mais velho tem cor de pele mais escura e é lido como negro” – explica – “E já nos aconteceu de viver uma situação muito agressiva de racismo com ele”. Em seu texto “Eu negra”, publicado no Brasil Post, Vanessa conta que entrou em uma loja de doces com sua família, quando seu filho – vestido como qualquer criança comum de classe média – foi retirado do estabelecimento por um segurança. E naquele momento, por seu filho, o processo de autoidentificação deixou de ser somente sobre ela. “A partir dali, não dava mais pra fingir que não seríamos vítimas de injúria ou atos racistas. Porque se o ‘meu ser-não-ser negra’ tinha me colocado em situações por vezes difusas de preconceito, mas me poupado de ser expulsa dos lugares, não pouparia o meu filho. E todo o meu processo de autoidentificação também passou a ser sobre nós, não apenas sobre mim.”
A professora da Faculdade Cásper Libero (FCL) Bianca Santana também publicou um texto no qual conta seu caminho até a autoidentificação como negra. Sua postagem, intitulada “Quando me descobri negra”, foi escrita quando Santana ainda estava no terceiro ano da faculdade.  “Um professor propôs uma investigação profunda das [minhas] próprias origens. E isso estimulou uma conexão de várias experiências e percepções: da acolhida como professora do cursinho popular Educafro à minha avó falando pra não prender o cabelo de determinada forma porque parecia ‘essas neguinhas’”. Santana relata que se considera negra há alguns anos – antes disso, era morena. “Era morena para as professoras do colégio católico, coleguinhas — que talvez não tomassem tanto sol — e para toda a família que nunca gostou do assunto”, afirma.
Segundo Bianca, tudo começou quando resolveu conhecer a proposta do cursinho comunitário Educafro. “O coordenador pedagógico me explicou a metodologia de ensino com a cumplicidade de quem olha um parente próximo. Quando me ofereci para dar aulas, seus olhos brilharam. Ouvi que, como a maioria dos professores era branca, eu seria uma boa referência para os estudantes negros. Eles veriam em mim, estudante da Universidade de São Paulo e da Faculdade Cásper Líbero, que há espaço para o negro em boas faculdades. Saí sem entender muito bem o que tinha ouvido.”
A partir daí, passou a reparar mais na cor das outras pessoas nos lugares em que frequentava. Como não identificou nada de africano nos costumes de sua família, concluiu que a ascensão social teria clareado sua identidade. “Óbvio que somos negros. Se nossa pele não é tão escura, nossos traços e cabelos revelam nossa etnia. Minha mãe, economista, funcionária de uma grande empresa, foi branqueada como os mulatos, que no século XIX passavam pó-de-arroz no rosto porque os clubes não aceitavam negros”, argumenta, em seu texto.
Já a ativista Ariane Cor conta que seus pais são brancos, de pele e identificação, “mas vindos da Bahia (mãe, que é a famosa sarará: filha de negros com pele clara e cabelo crespo, claro) e norte de Minas Gerais (pai, caboclo, mameluco)”. Ariane cresceu entre bisavós, avós, tios e primos com uma enorme diversidade de pigmentação, estando ela entre os membros mais claros da família. “O que sempre me diferenciou dos outros brancos da família foram os cabelos crespíssimos”, declara.
Cor explica que em sua família, o racismo sempre foi muito naturalizado e todas as manifestações de ancestralidade indígena ou africana foram embranquecidas em São Paulo. “Mas eu cresci na Vila Mariana e depois vivi a adolescência na Mooca, bairros de classe média. Se por um lado não me sentia pertencente àquela negritude da família, também não pertencia à branquitude do cabelo liso e sobrenome ‘diferente’ de pessoas nascidas no centro.”
Bianca Santana (Foto: Arquivo pessoal)
Bianca Santana (Foto: Arquivo pessoal)
Sobre situações de racismo, Ariane relata que tem uma “irmã de criação” – que é sua prima, mas criada por seus pais – que sempre foi sua grande parceira e melhor amiga. “Na primeira série, lembro que esqueci o lanche em casa e ela, que é sete anos mais velha, foi levar pra mim na escola pública onde eu estudava”. Sua irmã, que tem a pele escura, foi anunciada como sua empregada na sala de aula. “Isso me constrangeu de uma maneira absurda, porque minha mãe é empregada doméstica e eu não entendia como poderiam supor que minha irmã, com uns 15 anos, seria minha empregada”, relembra.
Em 2002, sua irmã teve um filho, do qual Ariane se tornou madrinha – o que a levou a um engajamento político mais sério. “Desde que esse menino nasceu eu estive muito dedicada a compreender o que é ser negro no Brasil e vivo isso com ele por onde passamos”, diz.
Até então, Cor não se identificava como negra, apesar de não se achar branca. “Submetia meus cabelos a procedimentos domadores e coloria de vermelho. Aí, meu marido – branco, de família italiana, mas umbandista – começou a questionar minha identidade racial, propositalmente, porque ele, branco, não me via como branca. Foi aí que eu tive a ‘epifania da negritude’ e percebi o quanto havia sido embranquecida e negava minhas origens africanas. O quanto eu considerava a minha negritude feia e me achava incapaz de subverter esse olhar”. A partir de então, abandonou os tratamentos capilares e passou a pesquisar sobre cabelos crespos e estética negra. “Me aprofundei nas questões de periferia, porque esses caminhos se cruzam bem no começo.”
O racismo cotidiano
Os exemplos acima, repletos de referências a características físicas, revelam uma verdade incômoda: mesmo com a pele clara e encarando tentativas de deslegitimação da identidade negra, o racismo se mantém presente. Muitas pessoas simplesmente não aceitam a autoidentificação negra e agem de forma debochosa e discriminatória com relação às características físicas percebidas como negras – como por exemplo, cabelos crespos ou narizes mais largos.
De fato, muita gente pode dizer que mulheres como Rodrigues, Santana e Cor não são negras, mas sim “morenas” ou “pardas”; porém, no dia a dia, dentro das lojas, no banco ou mesmo na rua, o racismo se revela por meio do reconhecimento de que aquela pessoa não é branca ou “se assemelha” a uma pessoa negra – condição esta que, por sua vez, é associada à pobreza, ou relacionada com atos criminosos.
Rodrigues relembra: “Vivi situações ao longo da vida que somente hoje consigo identificar como racistas. Situações mais agressivas, como vasculhar bolsa ou ser seguida, tenho a impressão de já não viver há algum tempo. Mas consigo identificar e interpretar como racistas aquelas mais sutis, relacionadas ao cabelo (cada vez mais assumidamente natural) ou a um não saber como me classificar socialmente, por exemplo. E acontece, invariavelmente, de técnicos de serviços ou entregadores terem dúvidas se sou a ‘dona da casa’ ou a ‘empregada’”.
Vanessa também conta que já foi abordada por duas vezes por um “comediante” que faz performances em uma praça. “Ele se ‘fantasia’ de mulher negra e gorda e por duas vezes me abordou se referindo a mim como sua ‘irmã gêmea’. Isso me parece altamente agressivo e preconceituoso, racista e gordofóbico (além de transfóbico). Na segunda abordagem, reagi de um jeito mais ostensivo, acabamos numa discussão quando ele, finalmente, me chamou de feia!”.
As experiências de Bianca Santana com o racismo não são muito diferentes. Em sua publicação “Nem todo lugar é lugar de preto”, no Brasil Post, ela cita alguns exemplos de situações em que foi alvo de racismo: “Na porta de um café, esperando uma amiga sair do banheiro. Três pessoas me fizeram pedidos de forma rude, em menos de cinco minutos. Com a resposta ‘eu não trabalho aqui’ e um sorriso desconcertante ninguém sabe onde enfiar a cara! Porque a pessoa entende o que aconteceu; Abrindo o arquivo com uma apresentação, no auditório de uma universidade pública, alguém me pergunta onde estava uma outra pessoa, imagino que funcionária da universidade. Eu respondo que não sei, que não trabalho lá. E a pessoa se assusta, perguntando, em tom de bronca, por que estou mexendo no computador. Eu respondo que vou fazer uma apresentação em alguns minutos. A pessoa desmonta, olha o folder do evento e solta um: ‘Ah! Você é a Bianca Santana!’; No parque, com meu bebê de olho claro no sling: ‘Sua patroa deixa você carregar ele assim?’.”
Ariane Cor cita situações que envolvem muito a questão do cabelo crespo, assunto profundamente familiar e comum às mulheres negras: “Há cinco anos abandonei os procedimentos químicos capilares e uso meus cabelos como eles são. Elementos de cultura negra como turbantes, estampas e acessórios também estão presentes na minha imagem sempre e eu chamo muita atenção por onde passo, quando não é um ambiente ‘descoladinho’. Isso não é ruim, necessariamente. Eu só acho desagradável quando elogiam minha coragem ou me acham exótica”.
Além disso, Cor relata que, quando abre o portão de sua casa térrea, a confundem com empregada doméstica e pedem para chamar a patroa – e que em lojas mais caras, demoram para atendê-la. “Uma vez, no ponto de ônibus, uma senhora enfurecida com a demora reclamou que a culpa era desses ’baianos que vinham pra cá fazer filho’ e apontou pra mim. Falei várias bobagens para a senhora, parei um táxi e fui embora”. Ariane também diz já ter sido questionada por uma garçonete se realmente gostava do seu cabelo armado, e se achava bonito.
Reconhecimento
Ariane Cor (Foto: Arquivo pessoal)
Ariane Cor (Foto: Arquivo pessoal)
Depoimentos pessoais são extremamente importantes e falam diretamente com quem os lê ou escuta. Em muitas dessas falas, algo remexe e traz à memória situações semelhantes, casos que geraram sofrimento e que muitas vezes não foram bem compreendidos no momento em que aconteceram, mas que com a ajuda de outra pessoa em posição similar chegam à tona sem máscaras, revelados como verdadeiramente são. Assim, muitas pessoas acabam constatando que sofreram racismo e que por muitos anos se negaram a viver e abraçar uma parte importante de sua subjetividade e identidade: a ancestralidade negra e sua amplitude no presente, incluindo o potencial transformador de uma autoimagem positiva e a chance de romper paradigmas nocivos.
Debater o racismo e a identificação racial no Brasil ainda é difícil e tem o peso do silenciamento. É preciso muita coragem para olhar para o passado e buscar respostas – e ainda mais para se permitir enxergar-se negro, não como lamentação introjetada por todas as mensagens depreciativas disseminadas na sociedade, mas como força pessoal e política que gera mudanças significativas.
É possível que alguns pontos dos relatos presentes nesse texto sejam, não por acaso, pontos importantes nos relatos de muitas pessoas que os leem. Que identidades possam, então, ser reconhecidas e reconstruídas em plenitude.

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