Por Washington Luiz de Araújo
Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff,
levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o sul. Ele, o mar, está do
outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram
aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de
seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto seu fulgor, que o menino
ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo,
gaguejando, pediu ao pai: ‘Me ajuda a olhar!’. (Eduardo Galeano em “O Livro
dos Abraços”)
Entrevistei Eduardo Galeano em 2011 para a Revista Brasileiros,
acompanhando o cineasta Guilhermo Planel durante as gravações do documentário
“Mais Náufragos do que Navegantes” (título doado pelo escritor). Para a
entrevista, que abri com o texto acima de “O Livro dos Abraços”, Galeano nos
recebeu no Café Brasilero, sua sala de recepção em Montevidéu.Havia quase meio
século que o escritor frequentava o local, que já foi fechado três vezes. Mas,
se dependesse dele, isso jamais voltaria a acontecer: “Todos os dias, faço
orações para Deus e o diabo para que esse café não seja fechado novamente”.
Na época da entrevista, Galeano preparava um novo livro,
sobre o qual se recusou, delicadamente, a dar detalhes: “Se contar, perco a
vontade de escrevê-lo.” Tratava-se da obra “Os Filhos dos Dias”, na qual conta
uma história sobre a política na América Latina para cada dia do calendário,
incluindo aí o 29 de fevereiro. Falando pouco sobre e bastante sobre as mazelas impingidas pelo
conservadorismo, Galeano só adiantou: “Cada livro me leva ao menos quatro ou
cinco anos de trabalho. Nasci perfeccionista, signo de Virgem.”
Recentemente, iniciei uma série de reedições, para a
“Revista Brasileiros” e para o site Brasil 247, a entrevistas realizadas por
mim com pessoas que sofreram na pele as ditaduras da América Latina. Estava
prevista compilação da entrevista com Eduardo Galeano. Aqui está – não porque
ele tenha falecido nesta segunda-feira, 13 de abril de 2015. Ele estará sempre
vivo. Aqui está porque ter conhecido sua
obra e, depois,tê-lo conhecido
pessoalmente marcou a minha vida.
Eduardo Galeano, quando criança, tinha o sonho de ser
jogador de futebol. “O Uruguai é um país “futebolizado”. O futebol colocou o
Uruguai na mapa do mundo”, ele disse, há alguns poucos anos, em entrevista a um
jornal brasileiro. Mas a literatura, o mundo político de esquerda e todos
aqueles que sonham com uma vida mais digna e justa para o ser humano, sobretudo
para aqueles historicamente explorados e humilhados, devem comemorar o fato de
ele ter se tornado escritor. Fosse futebolista com o mesmo talento que tinha na
escrita e na fala seria um craque inesquecível. Inesquecível como sempre será,
pelo ser humano generoso, pelo humanista incansável e pelo escritor brilhante
que foi. Eterno.
Abaixo estão alguns
trechos da entrevista, organizados em tópicos, sobre os direitos humanos –
negados cada vez mais nos dias de hoje, por força do conservadorismo que teima
em tentar nos espicaçar.
Direito a um trabalho digno - “No mundo inteiro, talvez um
pouco mais na América Latina, as palavras e a prática raramente se encontram e
quando se encontram não se saúdam, pois não se reconhecem. Isto, sobretudo, com
o tema dos Direitos Humanos.
Se as Declarações dos Direitos Humanos se traduzissem em
realidade, estaríamos habitando o mais feliz dos planetas. Mas ocorre que as
declarações parecem reportar a um planeta que não é o nosso. Vou citar um
exemplo dos mais glamorosos: todos
concordam em estabelecer como direito fundamental o direito ao trabalho.
O direito a um trabalho digno e o de integrar sindicatos, mas
hoje, na realidade, ocorre que o trabalho vale menos que o lixo. O mundo de
hoje confunde valor e preço e o preço do trabalho está cada vez mais barato.
Nota-se, por exemplo, que duas das empresas mais bem-sucedidas do planeta, que
são o Walmart e o McDonald’s, não permitem que seus trabalhadores se
sindicalizem.
Dois séculos de luta, de muito sacrifício e dor para que o
mundo inteiro reconheça o direito da sindicalização e, hoje, empresas de grande
sucesso negam o direito dos trabalhadores terem sindicato. Tudo isso depois do
que passaram os trabalhadores de Chicago, naquele primeiro de maio que o mundo
recorda a cada ano: os mártires de Chicago que reivindicavam o direito ao
trabalho, à segurança e de ter sindicatos.
Também negam o direito de trabalhar dignamente ou
simplesmente trabalhar, como é o caso do Movimento dos Sem Terra no Brasil, com
numerosos mártires – os muitos trabalhadores rurais que foram fuzilados pelo
delito de querer trabalhar, de querer trabalhar a terra.
Eles tinham de ser todos condecorados, porque não é crime
trabalhar, muito menos trabalhar a terra no mundo. Mas esse mundo recompensa a
figuração e despreza o trabalho.”
Direito de respirar - “É curioso como este nosso planeta
está trabalhando com tanto entusiasmo para sua própria aniquilação. São negados
alguns dos direitos humanos dos mais elementares de todos. Por exemplo, o
direito de respirar. Quando era menino, a mestra me dizia: ‘Respirar,
Eduardito, é o que é importante’. E respirar está cada vez mais difícil, pois o
ar está envenenado, principalmente nas grandes cidades, onde a ditadura dos
automóveis vai contra os transeuntes, que não podem caminhar.
Cidades que nasceram, segundo dizem, como lugares de
encontros entre as pessoas e agora são lugares de encontros entre as máquinas,
e as pessoas incomodam.”
Direito à vida - “O direito à vida é o direito fundamental
de todos os habitantes do planeta, mas é o mais violado de todos, pois ele é
privilégio de quem pode pagar; quem não pode se vira como conseguir para viver
ou morrer nesse intento.
Na verdade, na grande maioria dos países do mundo a vida
humana vale pouco ou nada, principalmente nos subúrbios, quando é a vida de um
pobre. Nas grandes cidades sobram pessoas, porque esse sistema, que quando eu
era criança se chamava capitalista, mas agora se chama economia de mercado, tem
mais náufragos que navegantes. Ou seja: os excluídos, os marginais, os que são
expulsos são muito mais do que os que estão integrados.
Esse sistema não sabe o que fazer com essa contradição que
ocorre, então converte a pobreza em delito e a castigam. Matam.”
Violência do homem - “A Declaração dos Direitos Humanos
também fala da igualdade de gêneros, que ainda é um direito a se conquistar. Na
maior parte do planeta, as mulheres são muito maltratadas. Eu diria que, na
realidade, elas são tratadas pior que nas letras de tango. Como se sabe, nesse
ritmo musical, as mulheres são todas putas, menos a mama.
E essa realidade de tratar as mulheres pior do que são
tratadas nos tangos se traduz em muitíssimos casos, lugares e na violência
direta que o macho exerce sobre a fêmea. Isso que chamamos curiosamente de
violência doméstica e que consiste na forma mais repulsiva do exercício de
direito de propriedade, que é o direito de propriedade entre pessoas. Direito
de propriedade que o macho se atribui sobre a fêmea.
E quando acontecem esses casos, que às vezes se registram
nas crônicas policiais e às vezes não, o macho dominante, o criminoso, se
explica dizendo: ‘Matei porque era minha’. Como se fosse realmente parte de seu
direito de propriedade o de aniquilar a mulher que a sorte (vida) lhe deu.
Nenhum macho ou supermacho que seja, nem o mais valente de todos, se anima em
dizer que a verdade não é essa. Nada a ver com: ‘Matei porque era minha’.
Na verdade, deveria confessar: ‘Matei-a por medo’. Porque a
violência do homem é o espelho do medo do homem de uma mulher sem medo.”
Iguais perante a lei? - “Teoricamente, somos todos iguais
perante a lei, isso diz a Constituição. Algumas constituições não diziam isso,
mas foi incorporado depois. A primeira Constituição dos Estados Unidos, que
sempre se toma como modelo de democracia, estabelecia que um negro era
equivalente a três quintos de uma pessoa branca. Menos mal que essa
Constituição tenha mudado bastante, porque, caso contrário, o Obama não poderia
ser presidente, pois nenhum país pode ser governado pelos três quintos de uma
pessoa.
GALEANO RENEGA SEU MAIOR CLÁSSICO: TEXTO RUIM
GALEANO RENEGA SEU MAIOR CLÁSSICO: TEXTO RUIM
É bom que depois foram corrigindo a Constituição e passaram
a ser menos racistas e machistas. Mas, na realidade, as coisas não mudaram
tanto. Por exemplo, em relação à situação dos pobres condenados por serem
pobres, condenados por um sistema que é incapaz de combater a pobreza. Sistema
que está em guerra contra os pobres que o próprio sistema gera.
A discriminação se aplica de tal modo que às vezes não a
vemos. Posso citar como exemplo a tortura. Os militantes de esquerda estão
acostumados, como eu, entre outros, a denunciar a tortura, mas, muitas vezes,
nos esquecemos de que a tortura não se aplica somente aos chamados presos
políticos. Nós nos esquecemos de que a tortura também é aplicada nos chamados
presos comuns, que são também políticos, pois são o triste resultado de um
sistema que funciona para poucos.
Esquecemos, portanto, de que a polícia impunemente tortura
os chamados delinquentes comuns, que são algemados e, às vezes, torturados até
a morte. Isso não se registra em parte alguma. O que me parece muito injusto e
também muito revelador.
Bom, acho que terminei porque eu poderia continuar falando e
falando. E falo sobre o tema porque é muito injusto. Falo com uma autocrítica
danada, porque muitas vezes nos esquecemos dessa situação.
Abaixo, o trailer do documentário Mais Náufragos do que
Navegantes, de Guilhermo Planel, com depoimentos de Eduardo Galeano.
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