AGENDA CULTURAL

2.10.18

A verdade pode ser inventada


*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro das academias de letras de Araçatuba-SP, Andradina e Itaperuna-RJ

Não sou leitor de romances policiais, mas em setembro de 2018 li, por força da TAG, duas obras do escritor inglês Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) que publicava, dentre outros gêneros, "romance policial filosófico". Nome meio estranho, por isso usei aspas.

Friedrich Dürrenmatt, escritor suíço, é pouco conhecido no Brasil. Todos os resenhistas e críticos dizem que, principalmente em "A Promessa", ele faz uma sátira do romance policial. Considero que além disso, ele dá uma aula de como se constrói uma boa narrativa policial, principalmente no capítulo 28.   


RESUMO DE "A PROMESSA": um ex-comandante da polícia encontra o autor após uma conferência literária sobre o gênero. Começa a criticar ambos. E começa a contar um episódio.

Assim, em poucas páginas, o narrador deixa de ser o autor e passa a ser o próprio ex-comandante, que conta uma história ocorrida há muitos anos. Matthäi, grande comissário de polícia, prestes a deixar a Suíça para assumir um posto na Jordânia, resolve postergar sua nova missão para investigar o assassinato de Gritli Moser, uma menina de Magendorf. Matthäi promete aos seus pais desolados encontrar o assassino. É a promessa.

O corpo foi encontrado na floresta pelo caixeiro viajante von Gunten. Todos os indícios levam à sua culpa. Matthäi discorda, mas a população exige um culpado. Coincidências de local, horário, bem como o fato de o suspeito vender, entre outras coisas, uma faca, criam em todos a convicção de que o crime está solucionado. A polícia é assim em todos os lugares do mundo.

Cético, Matthäi se envolve definitivamente no caso com o suicídio de Von Guten. Está convencido de que um trágico erro fora cometido. E, dessa forma, não cumpriu a promessa feita aos pais da vítima. 

A forma como Matthäi se vincula à promessa feita pode ser considerada por muitos, cinicamente, irreal, mas é o grande motor desse romance de cerca de 150 páginas. Sua vida é completamente alterada, ele desiste da Jordânia, acaba se isolando em um posto de gasolina, perde boa parte de sua reputação... Busca uma racionalidade perfeita, explica-a ao narrador da história. Numa história policial clássica, o desfecho seria, certamente, outro, com toda essa dedicação culminando em uma recompensa ao dedicado comissário. Mas não é exatamente isso o que acontece (Blog Biblioteca do Fábio).

RESUMO DE "A PANE": a narrativa se tornou peça radiofônica, filme e peça teatral. Ela deveria ser lida e estudada por estudantes de Direito, porque se trata de uma obsessão do mundo jurídico em buscar o criminoso. 

"A Pane" (1958) tem como personagem principal Traps, cujo carro tem uma pane numa pequena cidade. Ele é acolhido por um juiz aposentado, um ex-promotor, um ex-advogado e um ex-carrasco do lugar. E eles sempre se reúnem para um jantar, onde encenam julgamentos. Faltava o réu, então a chegada de Traps foi oportuna. Mas que crime cometeu aquela criatura? O promotor vai conversando, até que descobre que ele é um criminoso. A retórica é tão eficaz que o réu, desprezando o trabalho do advogado de defesa, se convence disso: ele é mesmo um criminoso.

Se "A Promessa" é uma crítica ao trabalho investigativo da polícia suíça e aos romances policiais, "A Pane" ironiza o Judiciário, a sua retórica que fabrica um criminoso. Em ambos os livros, polícia, juiz e promotor chegam por erro de método a um falso réu. 

As duas histórias terminam em suicídio porque são convencidas de um crime que não praticaram. A verdade pode ser inventada. 

Friedrich Dürrenmatt não é um escritor inglês tão lido no Brasil, mas encanta quem gosta de boas narrativas. Meus agradecimentos ao escritor brasileiro Cristóvão Tezza por indicar tal livro à TAG para que fosse o livro do mês de agosto. 


MAIS INFORMAÇÕES:

Afiado como uma navalha - Letícia Wierzchomsky

Resenha do livro por exposição oral - vídeo

Literatura e Direito: A Pane, de Friederich Durrenmatt 

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