AGENDA CULTURAL

26.5.20

Todos somos cegos? Ensaio sobre a cegueira

Foto de Orlando Brito 



“Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição.” (José Saramago)

Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP

Só depois de 25 anos de seu lançamento, eu li o livro "Ensaio sobre a cegueira", de José Saramago. Como estamos vivendo pandemias, resolvi fazer a sua leitura, já que ele trata do tema.

Em 2018, enfrentamos a epidemia da cegueira. Setor do eleitorado não percebia a besteira que estava fazendo, estava cego. A ponto de dizer, como ouvi em sala de espera de banco: "Se Bolsonaro não prestar, a gente tira e põe outro! Brasileiro é foda!" Outros setores diziam que a cegueira estava do outro lado. A lucidez não mora só num lado. 

Em 2020, estamos enfrentando a pandemia do coronavírus. No começo, até este cronista não acreditava muito nessa conversa, mas houve gente que andou chamando-a de "gripezinha". 
José Saramago

O livro de José Saramago, o único escritor de língua portuguesa a ostentar um Prêmio Nobel de Literatura, apresenta também uma epidemia (ou pandemia), onde toda a população ficou cega, chamada de cegueira branca, porque o cego não via, mas não estava mergulhado na escuridão. A imagem sumia e no lugar ficava tudo esbranquiçado. Talvez fosse apenas falta de lucidez.

Até chamam o livro de de Saramago de "ficção científica", porque as personagens não têm nome: médico, mulher do médico, a moça dos olhos escuros, o primeiro cego, o homem de venda num dos olhos etc.; e nem determina o lugar onde acontecia a cegueira coletiva. 
O primeiro a ficar cego foi um motorista no semáforo à espera do sinal verde. “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.” 

Aliás, quando o cineasta brasileiro Fernando Meirelles foi pedir que Saramago autorizasse transformação do livro em filme, a condição imposta foi não determinar o lugar da epidemia. E assim foi feito. 

E assim foi se alastrando, pegando até um médico oftalmologista, cuja esposa se fingiu de cega para poder acompanhar o marido ao isolamento dos contaminados num antigo hospício abandonado.

Na verdade, a narrativa do livro é distópica, pois  apresenta-a como uma espécie sem salvação, construída sobre a areia. Não há proposta que consiga a pôr nos trilhos. A utopia do mundo melhor não faz parte do livro, nem do jogo narrativo.

Considero que o livro "Ensaio sobre a cegueira" pode ser reescrito novamente, tendo como narradora a mulher do médico, a personagem que não ficou cega, que viu tudo, presenciou toda a tragédia. E participou dela ativamente, chegando ao assassinato em defesa do grupo de mulheres.

A convivência entre os cegos no isolamento onde já funcionara um hospício é um ponto forte do livro. Todos eram cegos, não havia guia de cego. Mesmo nessa condição, a pequenez da condição humana vicejava na convivência. A mulher do médico se fingia de cega, mas ninguém desconfiava disso porque os demais ao seu redor não viam que ela não tinha trejeitos de cego.

Outro momento forte da narrativa é após o incêndio do local da quarentena, quando os cegos ficaram perdidos pela cidade praticamente abandonados, nem podia voltar para suas casas, ninguém tinha experiência de caminhar pelas ruas como cego. Apenas o pequeno grupo de personagens da narrativa tinha o privilégio de ter a mulher do médico. Um privilégio para localizar alimentos nos empórios e supermercados abandonados. 

Um fator interessante foi a linguagem, porque as expressões que traziam a visão como centro se tornaram obsoletas. A voz ganha "status" de importância. O verbo "ver" que era quase sempre conjugado, também era logo rechaçado. A cegueira tira os olhos como o sentido-rei de nossa existência.

Para concluir, chamo o próprio Saramago com suas sábias palavras: “O sentido de responsabilidade é a consequência natural de uma boa visão, mas quando a aflição aperta, quando o corpo se nos desmanda de dor e angústia, então é que se vê o animalzinho que somos.”  

Neste tempo de pandemia do coronavírus, a leitura de "Ensaio sobre a cegueira" pode trazer certa lucidez. Boa leitura, com o corpo bem suado.    

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