AGENDA CULTURAL

A literatura feminina araçatubense: entre o lírico-sentimental e o amadurecimento da consciência crítica

Cintia Messias Brasileiro dos Santos


Artigo científico apresentado como requisito parcial para a obtenção do grau de pós-graduado em Literatura e Língua Portuguesa do Centro Universitário Toledo sob orientação do Prof. Dr. Francisco Antonio Ferreira Tito Damazo.

Centro Universitário Toledo - Araçatuba  - 2017 - 

 RESUMO

O objetivo deste artigo é realizar um levantamento e leituras interpretativas das obrasliterárias femininas de Araçatuba, contemplando o período entre 1980 e 2016. Esta pesquisa bibliográfica visa contribuir com o registro de títulos e suas respectivas autoras, realizando considerações analíticas do universo literário feminino araçatubense. Respaldados, sobretudo, nos estudos de Nelly Coelho sobre as relações existentes entre a literatura, o feminino singular e a sociedade. 

Palavras-chave: literatura; escritoras; Araçatuba.



ABSTRACT

The objective of this article is to carry out a survey for interpretive readings of the female literary works of Araçatuba, contemplating the period between 1980 and 2016. Thisbibliographical research aims to contribute to the record of titles and their respective authors, performing analytical considerations of the araçatubense feminine literary universe. Supported, above all, in Nelly Coelho's studies on the relationships among literature, the singular feminine and society.

Key-words: literature; writers; Araçatuba. 
INTRODUÇÃO

O presente artigo visa abordar, por meio de levantamento e leituras interpretativas, a produção literária feminina de Araçatuba, contemplando o período entre 1980 e 2016. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica que objetiva contribuir com o registro da produção feminil em Araçatuba, informando e realizando considerações analíticas desse universo literário criado por mulheres. 
Para embasar este trabalho, fomos buscar apoio, principalmente, nos estudos de Nelly Novaes Coelho sobre as relações existentes entre a mulher escritora, literatura e sociedade, presentes nos livros A literatura Feminina no Brasil Contemporâneo (1993) e FemininoSingular (1989): “relações essenciais entre os valores ou padrões de comportamento, consagrados por uma determinada Sociedade, e o estilo, problemática, estruturação, temática, etc. da criação literária que nela se engendra” (COELHO et al., 1989, p. 4).
Ressaltamos que, quando se fala em literatura produzida por mulher, na maioria das vezes, nos referimos às produções da mulher de classe média ou alta, que tem acesso à cultura letrada. A mulher do povo, mergulhada comumente no analfabetismo e no anonimato, quase sempre, se expressa de forma oral (COELHO, 1993).
Em termos artísticos, para Coelho (1993), as vozes femininas surgidas nos anos 1960/1970 gestaram a emancipação contemporânea e seriam responsáveis pelo amadurecimento da consciência crítica e artística da mulher. Integrando-se da multiforme problemática do mundo atual e assumindo sua nova condição feminina. A partir dos anos 80, os caminhos e as tendências se multiplicam. “Faz-se ouvir, na literatura feminina, uma voz de mulher desencantada, que conquista a liberdade, mas descobre que esta não foi ainda incorporada pelo sistema” (COELHO, 2002, p. 18).  
Conforme Coelho (2002), no limiar do século XXI, a literatura e as artes em geral se dispersam pelos inúmeros caminhos abertos pelo Experimentalismo. “Escritores e escritoras sabem que da palavra de cada um depende a reinvenção e renomeação do mundo” (COELHO, 2002, p. 18). Ressaltando que, a natureza da arte depende do contexto histórico, econômico, social, de classe ou de dominação em que está presente o artista ou o escritor. “É através dessa perspectiva que, sem dúvida, podemos falar em uma literatura feminina e em uma literatura masculina, pois as coordenadas do sistema sociocultural ainda vigentes estabelecem profundas diferenças entre o ser-homem e o ser-mulher” (COELHO, 1993, p.15).
Ora, não seria de outra maneira que se deveria observar a produção de escritoras de Araçatuba. O que caracteriza sua obra é essencialmente sua formação sociocultural, sua percepção ideológica e visão de mundo. A par disso, evidentemente, se distinguirão entre si e das demais escritoras e escritores pela peculiaridade e particularidade de seu estilo.  
Primeiramente, vamos inscrever as autoras de Araçatuba, os títulos, gêneros e o ano de suas publicações, apreciando o período entre 1980 e 2016. Literatura infantojuvenil. Gênero – ficção em prosa: Larissa e as estrelas (2014), A arca da bicharada/The animals' ark - Vol. 1 - Coleção com 3 livros (1985) e A arca da bicharada/The animals' ark - Vol. 2 - Coleção com 2 livros (1987), da escritora Marilurdes Martins Campezi. 
Da autora Ana Carolina Rocha Soares (Calula): Como nasceu a jabuticaba (2001), A rua dos namorados (2001); Festa na Floresta (2016) em coautoria com Ana Lúcia de Arruda Ramos Rezende. São de autoria de Ana Lúcia de Arruda Ramos Rezende: Encontro na feira(2014) em coautoria com Lívia Bernardes Rodrigues, Colorida (2015) e Você é meu amigo?(2015). De Edith de Souza: O filho do sapateiro (s/d), Sonhos Avulsos (2002) – escrito em parceria com Sônia Pereira, Carinha de Boneca (2004), Brincadeiras de Criança (2005) e A história de João Bobão (2006).  De Sônia Pereira, autora de Guaraçailândia (1999). De Hilda Aparecida Cardoso, Traquinagens de Angélica (2003). De Maria José Bedran de Castro (Zezé Bedran), Contos para criança (s/d).
Ainda obras de literatura infantojuvenil. De autoria de Rita Lavoyer temos: Natal e capim (2007), O navegador de um barquinho de papel (2007), O menino e a pedra (2008), O valor de uma árvore (2008), O esconderijo do dragão (2008), Bullying não é brincadeira(2008), Zooesia (2013) e O Alzheimer do Vovô (2016).  De Yara Pedro de Carvalho: O Mistério do Objeto Luminoso (1983), A Volta do Objeto Luminoso (1984), Vida de Boneca(2008), Lanche de Bandeja (2008), Um dia, um anjo (2008) e A casa da vovó Bela (2014) – poesia. De Marly Aparecida Garcia Souto: Uma dose de amor (1996) e Poetando a adoção, adotando a poesia (1997) – ambos de poesia.  
Em seguida, mencionamos os livros de poesia: Instantâneos (1997) e Vinhos (2003), de Cecília Ferreira. Ciranda de Vidro (1998), poesias e crônicas, de Cidinha Baracat. Criatura(2010), deAna Carolina Rocha, (Calula). Risos e Lágrimas, de Ana de Almeida dos Santos Zaher(2000). Garatujas de poesias (2012), de Irma Matioso Ré. Coisas de Você, de Mim e dos Outros (s/d), Versos Escritos n’Água (s/d), de Lúcia Milani Piantino. Versos e Gotas (1995), de Zuliria Martins Minicucci em coautoria com Vicente Minicucci. Minha nudez (1993) e Por trás da carne (1995), de Vilmara Bello. Fragmentos de um amor perdido(2009), de Sylvia Senny em parceria com Edson Maciel. Porta-retrato (1995) e Tempo de colher margaridas, de Marilurdes Martins Campezi (2015). Partida (2012), de Rita Lavoyer. Fantasias (2015), de Salete Marini. 
Romances: Boinu (1994), de Lúcia Milani Piantino, agraciado com o prêmio “Graciliano Ramos” pela União Brasileira de Escritores (UBE). O diário de vó Lina (2011), deEmília Goulart. Rua da Liberdade, 44 (2002) e Os filhos de Moisés (2015), de Maria Luzia Martins Villela. Minha máxima culpa (1985), de Yara Pedro de Carvalho. A luta contra o destino (1996), de Márcia Araújo. O tangedor de gado (2003), de Hilda Aparecida Cardoso. O mistério do condomínio (2015), de Fabiana Cerqueira Costa Ishizawa. ConSer (2003), de Cecília Marli da Costa Lima, romance biográfico.
Contos: Descaminhos dos anjos (2012), de Emília Goulart. Um Tempo em Cinco Contos (s/d), deLúcia Milani Piantino. Sem nome e sem choro (2003), de Maria Luzia Martins Vilela. Contos, fatos e retratos (2006), de Rita Lavoyer. Confidências (2012), contos e poesias, de Yara Pedro de Carvalho.
Crônicas: Janela aberta (2003), de Maria José Bedran de Castro (Zezé Bedran).  De retalho em retalho (2013), de Marianice Paupitz Nucera (crônicas e contos?). Focalizando(1993), de Odette Costa Bodstein. Cá entre nós (2007), de Célia Vilela. Rematando este levantamento bibliográfico de autoras que atuam em Araçatuba, citamos os títulos do gênero biografia: Um anjo gerado por mim (2006), de Maria Alves Neves. Contadora de Histórias(2013), de Maria José da Silva.
Abrimos um parêntese para ressaltar que as obras de Ivana Arruda Leite e Solange de Castro Neves, autoras natas de Araçatuba, mas que residem na cidade de São Paulo, não são referidas neste trabalho, pois o presente estudo se concentra, exclusivamente, nas autoras que atuam no panorama local.
Considerando o registro de 71 títulos, e as limitações de espaço para este artigo, centraremos nossas apreciações analíticas nas seguintes obras: 
   
 O Alzheimer do vovô (2016), de Rita Lavoyer; 
 A arca da bicharada Vol. 1 (1985), Larissa e as estrelas (2014) e Porta-retrato(1995), de Marilurdes Campezi; 
 Instantâneos (1997) e Vinhos (2003), de Cecília Ferreira; 
 Ciranda de Vidro (1998), de Cidinha Baract; 
 Boinu (1994), de Lúcia Piantino;
 O diário de vó Lina (2011), de Emília Goulart;
 Os filhos de Moisés (2015), de Maria Luzia Villela. 

Este estudo de escrita feminina não abordará as questões feministas que acaso nelas perpassem. Prioriza o resultado artístico, a visão singular e sensível de mundo de suas criadoras perante sua percepção do ser e sua condição humana.

I. A LITERATURA INFANTOJUVENIL ARAÇATUBENSE

No âmbito da Literatura e da Crítica, entre os fenômenos mais significativos, está a crescente importância que vem assumindo três áreas de criação literária que, tradicionalmente, eram ignoradas ou minimizadas pela cultura oficial: a literatura escrita pela mulher; a literatura destinada às crianças ou jovens e a literatura "negra” (COELHO, 1993).
Para Marisa Lajolo, uma das autoras de Feminino Singular (1989), dentre as relações possíveis entre a literatura infantil e a mulher, uma das mais imediatas é: 

a que se impõe a partir da observação simples de que a mulher, devido a seu contato mais prolongado com a criança, tem maisoportunidades de lhe contar histórias e lhe recitar versos. Assim é ao menos que alguns memorialistas evocam sua iniciação aos livros e à literatura (...) O exame quantitativo da produção literária infantil brasileira contemporânea mostra uma nítida supremacia feminina (...) que na maior parte dos casos frequentam congressos, encontros, simpósios e similares eventos que ocorrem em nome da literatura infantil (LAJOLO; COELHO et al., 1989, p. 16-17). 


Durante o levantamento bibliográfico das autoras que atuam em Araçatuba, percebeu-se um nítido destaque na produção de livros infantis. Segundo Lajolo (COELHO et al., 1989, p. 17): “tal supremacia, no entanto, decorre menos de irresistível vocação feminina para atividades ligadas à infância e muito mais da marginalização de ambas (mulher e criança) dos centros de decisão e de poder”. Isso também se confirma ao observarmos o cenário local. As autoras Marilurdes Martins Campezi e Rita de Cássia Zuim Lavoyer possuem forte atuação na área de educação.
No primeiro livro da coleção A arca da bicharada (1985), de Marilurdes Campezi, três fábulas são contadas: Onde será a casa da Joaninha?, O patinho Xadrez e O porquinho Pinta-Brava. A obra de Campezi (1985), com versão para o inglês de Tania do Amaral, foi idealizada com fins pedagógicos para uma rede de ensino particular e distribuída nacionalmente. 
Para Nelly Coelho, fábula "é a narrativa (de natureza simbólica) de uma situação vivida por animais que alude a uma situação humana e tem por objetivo transmitir certa moralidade" (2000, p. 165). Características presentes nas três historíolas do primeiro volume de A arca da bicharada (1985). Narradas em sala de aula com o objetivo de estimular o desenvolvimento emocional, social e cognitivo das crianças. 
Em Onde será a casa da Joaninha? há predominância de personagens femininas e afazeres domésticos, a moral é que a felicidade está dentro de nós mesmos. O patinho Xadreztraz uma temática semelhante ao conto Patinho Feio e os personagens são todos masculinos. No final, o personagem principal termina com uma asa branca e o restante do corpo preto. Tendo como lição “que o preto e o branco são cores irmãs e podem viver juntas, enfeitando a natureza” (CAMPEZI, 1985, p. 53). 
Já em O porquinho Pinta-Brava, um porquinho malcriado, ganhou um bom puxão de orelhas da matriarca e um belo resfriado após tentar fazer mal às formigas: “quem mandou perturbar a vida de quem nada lhe fizera?” (CAMPEZI, 1985, p. 53). Segundo Coelho (2000), a Literatura Infantil é antes de tudo literatura, ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade estética, e é isto que precisa ter em sala de aula. Ela faz sua contribuição para formação do ser humano por meio do convívio leitor-livro, desenvolvendo no aluno a reflexão e o espírito crítico.
Nesse sentido, pode-se entender que as fábulas elaboradas por Campezi (1985) pretendem estimular significados quanto à consciência do eu em relação ao outro, a leitura do mundo em seus vários níveis e, sobretudo, dinamizar o estudo e conhecimento das línguas (português e inglês).
 Para Quintana (SANTOS, et al., 2002), herdamos dos colonizadores europeus essa concepção pedagógica e moralizante da Literatura Infantil como auxiliares na reprodução de valores sociais. Para ela, de modo geral, adultos e instituições não acreditam que a criança seja capaz de participar e analisar o mundo que a rodeia. Por isso, as histórias infantis ainda estão tão marcadas por aspectos pedagógicos e moralizantes.
A prosa intimista (de sondagem psicológica) é um estilo literário em que as emoções e sentimentos do narrador, dos personagens da obra são refletidos na escrita. É uma grande característica da literatura feita por mulheres, conforme afirma Coelho (1993). Particularidade, intensamente, presente nos livros: A arca da bicharada (1985) e Larissa e as estrelas (2014) de Marilurdes Campezi, e O Alzheimer do vovô de Rita Lavoyer (2016).  Nas três obras as vivências familiares inspiram as narradoras. Família é uma constante temática comum na produção infantil de Araçatuba. 
Inspirada pela neta, em Larissa e as estrelas (2014), sua terceira obra infantil, Marilurdes Campezi mergulha no universo infantil. A voz da narradora, também voz da avó-professora, nos conduz à doce construção do aprendizado de Larissa, ilustrado, principalmente, pela voz da menina por meio da relação entre a neta e a avó: 

- O que é segredo vovó? 
- É alguma coisa que só você sabe e não conta para ninguém.
- Então eu quero escolher minha estrela e ter segredo. Posso?
- Pode, querida. (CAMPEZI, 2014, p.7).
Considerando que a fantasia significa algo bem mais concreto para a criança do que para o adulto, Larissa tem um papel claramente questionador na narrativa. A autora mescla o lúdico e o real, valorizando o poder de imaginação da neta e das metáforas com as estrelas. Assim, o aprendizado e a reflexão sobre o mundo acontecem: “Foi com as constelações que Larissa conheceu a beleza que é não viver sozinha”. (CAMPEZI, p.33)
A figura da narradora e da voz feminina é privilegiada e são pouquíssimos os personagens masculinos citados na história, que aparecem apenas com papéis coadjuvantes. Personagens e narradoras, relatam sua visão de mundo pelo olhar feminino.   
Outro ponto relevante diz respeito à representação da mulher que livros infantis constroem, espelham e/ou reforçam. Na obra Larissa e as estrelas, há a forte figura da pessoa adulta, a avó, que ensina e conduz a construção de aprendizado da neta. Esses momentos de realidade entremeados por fantasia vão se fundindo dentro da narrativa e construindo significados. Acontece o rompimento da visão exclusivamente doméstica da mulher, entretecendo-se com o social, o histórico e o cultural: 

- O que é pesquisar? 
- É procurar saber. A enciclopédia de nomes é um bom começo. 
- Enciclopédia? Eu ouvi meu pai falar que tem uma. 
- Mas a do seu pai não é de nomes. Vamos pesquisar no seu computador? 
- Não posso. Eu ainda não sei ler. Você me ajuda a procurar o nome da Estela? (CAMPEZI, 2013, p.19-21). 
Apesar de o título deixar claro o tema da história, O Alzheimer do vovô, oitavo livroinfantil da autora Rita Lavoyer (2016), explora os valores morais sociais, as várias relações e figuras familiares (casamento, maternidade, paternidade, divórcio, velhice, doença etc.). Além disso, o narrador aborda a rebeldia e o desenvolvimento do adolescente Rafael Ricardo: “seus esquecimentos são de propósito, Rafael Ricardo, o esquecimento do seu avô, não! Você lhe deve respeito! Ah, sua tia não é solteirona, é descasada como o seu pai e eu... sobre seu primo, sei pouco sobre ele, mas merece respeito também” (LAVOYER, 2016, p. 8). Como se observa, a narradora também cultiva aspectos pedagógicos e moralizantes em sua obra.
Narradores intercalam fatos do passado e do presente, abraçando três gerações (o avô, o filho e o neto adolescente), além do cachorro Almodóvar do Nascimento, que em algumas partes também se torna narrador da história. Em vários momentos, há a presença da ótica masculina e que dá voz ao homem ou ao garoto preconceituoso, machista e narcisista. No trecho a seguir, uma conversa entre os personagens Rafael Ricardo (pai e filho possuem o mesmo nome) que não moram na mesma casa, pois os pais são divorciados: “Tenha paciência com ela, filho. Deve se estressar no trabalho e leva os problemas para casa, sem contar que mulheres vivem tendo chiliques. Liga não, as mães são todas iguais” (LAVOYER, p. 30, 2016).
Nos tempos vividos por seus personagens, Lavoyer (2016) descreve a complicada aventura humana em veredas que se cruzam, se entrelaçam e se separam. Para Lajolo (1989), assim percebemos a identificação da mulher com o papel a ela reservado em uma sociedade ainda patriarcal como a nossa (LAJOLO; COELHO et al., 1989, p. 19). Como podemos observar neste trecho: “Coitada da tia Carla Patrícia, tão boazinha, merecia um companheiro que a fizesse feliz. Acho que é essa aparência imensa dela que a deixa sozinha. (...) Ela é a própria personificação do bolo da noiva” (LAVOYER, p. 45, 2016). 
De modo geral, detectamos uma literatura infantil feminina (araçatubense) com estruturas simples no plano literário. Entretanto, por meio dessa leitura, percebe-se que há uma linhagem humanista nela revelada. Constatamos que a representação do feminino e as questões de gênero estão bem incorporadas. As vozes das narradoras, conscientemente ou não, nos entregam sua visão de mundo, reproduzem papéis femininos e masculinos, espaços e horizontes – desejados ou indesejados – da sociedade na qual elas circulam e com a qual interagem.

II.A POESIA FEMININA ARAÇATUBENSE

Sabe-se que a literatura brasileira de autoria feminina esteve sempre à margem. Coelho (1993), observa que, a partir de 1960 acontece a passagem de uma literatura feminina lírica-sentimental para uma de ética existencial. 
Quer saber como é a alma de um povo? Não vá ao seu registro político. É como diz Prado (1989): “a Poesia é simplesmente a guardiã da realidade, realidade que nos remeterá sempre ao ser por excelência, à realidade absoluta” (PRADO; COELHO et al., 1989, p. 83). Assim é que, inspirada por suas reminiscências, reflexões sobre a vida e o mundo contemporâneo, Cidinha Baract, publicou seu livro de poemas e crônicas: Ciranda de Vidro(1998). Por que Ciranda de Vidro? 

Em formas e cores de pura magia,
pejadas de fé ou de crença vazias,
palavras de vidro, de onde elas vêm?
- Da vida que ascende seus jatos de luz, 
- da morte que apaga o percurso da vida,
- do amor que dá à vida e à morte (BARACAT, 1998, p.11). 

O primeiro poema do livro é Ciranda de Vidro, todavia o significado do título da obra se completa em Caleidoscópio, crônica seguinte ao poema. Nele, Baracat (1998) resgata suas memórias de menina, narra a lembrança de um Natal difícil, quando ela, uma garotinha pobre, recebe um presente da Prefeitura de Macatuba, cidadezinha do interior paulista. Notamos que ela almejava um brinquedo, um vestido, um doce etc. Cidinha nem sabia o nome daquilo, não o desejara, mas “aquele pequeno cilindro, tão inexpressivo por fora e tão rico de sugestões e imagens por dentro, ficou sendo para mim um símbolo de magia e poder de transformação” (BARACAT, 1998, p.15). 
No poema e na crônica iniciais, a poetisa introduz o leitor ao seu universo, onde as palavras brincam em sua Ciranda de Vidro (BARACAT, 1998).  Nos poemas e nos textos em prosa da obra, as vozes da menina e da mulher se confundem e partilham: ritmo, subjetividade, cosmovisão e sua filosofia de vida. O livro é subdivido em oito tópicos: Vidro verde da esperança, Nas asas azuis da crença, Louvação lilás, Lamento incolor, Livre libelo amarelo, Ufano marrom dourado”, “Cinza de sonho e saudade, Vermelho quente de amor – este último apenas com poemas. Cada capítulo é aberto com pequenas ilustrações e com versos, como o exemplo abaixo: “Nas meigas mãos da mulher, / Mãe, amiga, mestra, irmã, / Movem-se as molas do mundo” (BARACAT, 1998, p. 32).
O livro é composto por 26 textos. Nele, Cidinha Baracat (1998) parafraseia alguns poetas renomados, faz sua homenagem a Araçatuba, escreve sobre família, as grandes mulheres de sua vida, cidadania, infância, morte, corrupção, fé... De ipês a excluídos, da dor ao amor, a poetisa e cronista vai da prosa ao verso para dar ao leitor uma mostra ampla e reflexiva do seu universo: “Minha terra é um poema sem rima nem metro / Traçado a machado por braços de aço / De um grupo de bravos, que embora sofrendo, / Confiou notriunfo e descreu do fracasso.” (BARACAT, 1998, p. 57).
Conforme Ortega y Gasset apud Coelho (1993, p. 15), a literatura, assim como a arte, é uma forma especial de relações que se estabelecem entre os homens e suas circunstâncias de vida. De modo geral, a escrita de Baracat (1998) traz um texto confessional. Expressa o sentimento como mulher, artista, esposa, mãe, filha, amiga, educadora e cidadã. Mergulha na própria vida, confiando ao leitor a sua visão peculiar do mundo. Afinal, como diz a poeta: “No banquete da vida há lugar para todos. / Posso sentar ao seu lado? (BARACAT, 1998, p. 46).
 O livro Porta-retrato: crônicas poéticas (1995) possui 41 poemas. Nele, a escritora Marilurdes Campezi esclarece, logo no texto de orelha, que empresta seus sentimentos para homenagear Araçatuba, sem a pretensão de um resgate histórico. A cidade é seu tema, seu universo de lembranças e reflexões, não há divisões de capítulos. A poeta relata fatos que resgata da sua memória, assumindo sua identidade araçatubense. Campezi (1995) diz que se atreve a publicar crônicas em formas de poemas: “Compus um porta-retrato / com fotos dentro de mim. / Sou bem assim: / Do passado e do presente / Como as fotos aqui descritas (...) / O vidro fino e brilhante / que protege este retrato / deixa ver na transparência / minha ‘alma araçatubense” (CAMPEZI, 1995, p.15).  
Com exceção do primeiro poema, no decorrer do livro, na página que antecede o poema, a escritora sempre faz uma explanação em prosa sobre o fato que vai poetar: “Mais uma vez um fato econômico parece ter influído diretamente no fato cultural: muitos trabalhadores nos canaviais relegaram a segundo plano os bancos escolares, que continuam a se esvaziar na época do corte” (CAMPEZI, 1995, p.26). Para Gancho (1989), a partir da semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, a poesia sofreu muitas transformações, não apenas na forma, mas também no conteúdo. A poesia moderna ressalta o mundo que nos cerca: progresso, máquinas, devastação ecológica: “E deita tristonho / na terra sagrada. / Mãos soltas no peito, / maldiz a sua sorte. // À sombra da cana / adormece. / Até que a morte os separe (CAMPEZI, 1995, p.27).
Como afirma Moisés (1968), o poeta lírico está preocupado com o próprio “eu”, sua obra reflete seus sentimentos, ideias ou reflexões subjetivas. Portanto, é possível perceber que há uma singularidade artística tanto em Ciranda de Vidro (1998) quanto em Porta-retrato(1995), nos quais ocorre a predominância da poesia lírica. Para Moisés (1968), em razão do seu peculiar narcisismo, o poeta lírico trabalha com sentimentos e emoções quase à flor da pele. Ao contrário do épico que apresenta a poética essencial, intrínseca e intemporal, onde o poeta se aproxima das zonas de verdades universais e transpessoais. 
Para Ilka Laurito (COELHO et al., 1989, p. 65) “quem tem experiência no trato com o texto, percebe, realmente, quem é versejador ou quem é versejadora e quem é realmente um poeta.” Instantâneos (1997) e Vinhos (2003), escritos pela poetisa Cecília Maria Vidigal Ferreira, assim como os livros de Campezi (1995) e Baract (1998), também são compostos por poemas líricos. 
Na orelha do livro Instantâneos (1997), escrita por Odette Costa, há um relato da cronista sobre como surgiu o primeiro livro de Ferreira (1997). Em homenagem a Araçatuba, Odette pediu a Cecília que escrevesse algo sobre a cidade. Ela tentou várias vezes escrever uma crônica, mas o que compôs foi um poema. Depois, poemas com outros temas brotaram e alguns foram selecionados para Instantâneos (1997). 
Instantâneos (1997) possui 38 poemas, sendo subdivido em quatro partes: Insurreição, Revés, Redenção e Ressurreição. Percebe-se que a poeta faz um paralelo com a via-crúcis. Da revolta à ressureição, o eu poético verseja sobre sua via-sacra. Após cada título de capítulo, que ocupa uma página, a poeta apresenta uma figura na página sequente. Telas quadradas que são preenchidas por figuras geométricas (quadrados, retângulos, losangos) dispostas em diferentes ângulos, representando cada etapa do caminho do eu poético.  A última figura, um oito deitado, remete abertamente ao símbolo do infinito. 
Vinhos, o segundo livro da poetisa Ferreira, foi publicado em 2003. Diferentemente, das poetisas Campezi (1995) e Baracat (1998), Ferreira não explana sobre os títulos dos seus dois livros. Em Instantâneos (1997), apenas no 11º poema, nomeado de Instantâneo, há uma menção direta ao título de seu primeiro livro: Pela árvore copada / luz de mercúrio coada / clica o medo sem fim. // No instantâneo-sépia / nenhuma sombra de mim (FERREIRA, 1997, p. 31). Araçatuba é o título de um dos poemas de Instantâneos (1997), faz parte do tópico Redenção. É o único da obra da poetisa consagrado à cidade, conforme observamos em seus versos finais: “Araçatuba de hoje, / vibrante e efervescente, / cresça, transforme, alimente, / seus amigos, sua gente, / e não perca a poesia, / o encanto, o desafio / de ser sempre o interior” (FERREIRA, 1997, p. 63).
Na obra Vinhos (2003), no sumário, a apresentação dos 49 poemas tem gradação e sabor: Mélicos, Cítricos, Amaros e Raros, nomenclaturas que remetem ao universo dos apreciadores de vinho. Na Grécia, o vinho era encarado não apenas como religião, mas também como filosofia, arte e ciência. O vinho foi estudado e cantado por cientistas, filósofos e poetas, como Hipócrates, Platão, Plínio e Eurípedes: “A atitude grega perante o vinho pode ser expressa em uma única palavra: entusiasmo, etimologicamente originada do vocábulo grego enthousiasmós (transporte divino), que designava a embriaguez ritual”. (Disponível em: . Acesso em: 30 ago. 2017).
Podemos dizer que, metaforicamente, a poeta tomou do vinho para a poesia a atmosfera de libertação, entusiasmo, embriaguez sagrada e imortalidade. Não compôs sobre vinhos. A palavra vinhos aparece apenas no poema Intuição, desenhando um paralelo, como notamos nos versos a seguir: “Vinhos, versos; / singulares / os sinais. // Enfim o dia em que me deste / teu contorno, teu brilho / e o tilintar, na face cristalina, / de enigmas abissais” (FERREIRA, 2003, p. 27). 
Para Adélia Prado (1989), a poesia é o experimento do ser, do que subsiste à aparência: “a poesia para mim é um experimento de totalidade, de inserção no eterno. Não se dirige à minha inteligência, enquanto pensamento lógico, mas a um lugar especial em mim, mais profundo, ao meu espírito, ao lugar mesmo da minha identidade humana” (PRADO; COELHO et al., 1989, p. 82).
A linguagem imagética se faz densamente presente nos poemas de Ferreira. A obra de Ferreira (2003) é distinguida pela linguagem sugestiva, metafórica, figurada... A palavra é valorizada e exala função poética, estimulando novas possibilidades de leitura. Atributos que podemos notar no poema AMORMinerAL, do livro Vinhos (2003): Tão instintivo e brando envereda, / provocante, nos sulcos das pedras. / Num toque suave e fugidio/ – de quando em vez tépido, / vez por outra frio  / secretando o limo; / é assim o rio. // Sensual o amor do mineral// (FERREIRA, 2003, p.47).
Para Coelho (1993), embora haja várias tendências de estilo, processos ou temas, a poesia brasileira contemporânea e as vozes femininas apresentam um traço em comum: a consciência experimentalista, “no sentido do reajustamento da linguagem às solicitações dos novos tempos e o impulso dinâmico de integração do ser humano e da poesia no processo histórico em desenvolvimento” (COELHO, 1993, p. 17).  
Características narrativas, descritivas e dissertativas. Poemas livres, sonetos, líricos... Conforme Coelho (1993), notamos que houve um aprofundamento da consciência crítica da mulher em relação a si mesma e à tarefa que lhe caberia desempenhar nos âmbitos da criação literária e da sociedade em mudança. As poetisas Cidinha Baracat, Marilurdes Campezi e Cecília Ferreira, em suas respectivas obras: Ciranda de Vidro (1998), Porta-retrato (1995), Instantâneos (1997) e Vinhos (2003), mostram a capacidade de contemplar o real. Descobrem, captam e formalizam suas percepções por meio da poesia. Apresentam novas buscas, novas formas do ser poeta e do ser da poesia. 
III.A PROSA FEMININA ARAÇATUBENSE

Para Julieta Ladeira (1989), certamente as escritoras brasileiras apareceram praticamente à altura do Romantismo. Segundo ela, sempre há nomes que antecipam ou prolongam, mas a mulher escritora, no Brasil, surgiu mesmo com o Romantismo. Escreviapáginas de prosa ou poemas sobre o lado emotivo da vida, sentimentos, sensações... Manifestações voltadas em geral, para o lirismo. Não tinha outras experiências, não contava com sua própria visão de mundo.
Segundo Coelho (2002), pós anos 90, começam-se a diluir as questões relativas à construção de gênero, identidade feminina e as escritoras, como por exemplo, Patrícia Melo e Adélia Prado, começam a discutir em suas obras temáticas ligadas às questões existenciais do ser humano, como a erupção do sagrado ou aspectos sociais mais gerais. As autoras passam a apresentar suas realidades que são interiorizadas, psicológicas ou introvertidas. 
Assim sendo, no gênero prosa, partimos das relações existentes entre literatura e sociedade, procurando detectar a consciência crítica da mulher em relação ao mundo onde vive. Para isso, vamos analisar os seguintes romances: O diário de vó Lina (2011), de Emília Goulart. Os filhos de Moisés (2015), de Maria Luzia Martins Villela e Boinu (1994), de Lúcia Milani Piantino. Priorizando o resultado artístico, a visão singular e sensível de mundo encontrados em Boinu (1994).
O diário de vó Lina (2011), deEmília Goulart, traz duas personagens e duas vozes femininas marcantes: Denise, a neta, e Vó Lina. Moça de família abastada, Denise é filha de José Antonio, advogado, e de Laura, uma mãe muito vaidosa e de pouca formação cultural. André é o irmão caçula, e Vó Lina, que na verdade é tia-avó de Denise, ocupa a figura da grande matriarca dessa família. Trata-se de um universo particular.
Após a morte de Vó Lina, a jovem Denise, narradora-personagem, vai estudar na Inglaterra e leva o diário da avó em segredo. Durante sua estadia no exterior, por meio do diário, passa a conhecer o passado de vó Lina e os desafios da vida enfrentados por ela. Paralelo às descobertas relacionadas à avó, há também seus próprios desafios e suas descobertas. No decorrer da narrativa, Denise passa por conflitos pessoais e familiares, sempre citando os ensinamentos de vó Lina. 
O drama de redefinição, vivido pelas mulheres contemporâneas (mãe, filha, avó, profissional, estudante, do lar), sublinha o enredo da história criada por Goulart (2011), em que a memória individual é chamada para definir o perfil psicológico das personagens, como percebemos em Denise: “Voltei para o Brasil com uma certeza: o poeta tinha razão, o amor não é imortal, é chama que se apaga. Mas a chama do nosso amor poderá um dia ser acesa” (GOULART, p. 80, 2011). Um discurso maduro e culto para uma jovem que acaba de voltar de um intercâmbio. O drama familiar ainda traz frases moralistas, mistura arte e política sem o devido embasamento. Há conflito familiar, suspense e mistério, violência sexual, doença... A história gira em torno dos segredos dessa família falsamente estruturada. No fim do romance, mesmo contaminada pelo vírus HIV, Denise mantém sua devoção à memória de vó Lina. 
Os filhos de Moisés (2015), de Maria Luzia Villela, possuem uma narrativa elaborada e estética. Inicialmente, por meio do preâmbulo, datado com os anos de 1845-48, o narrador observador introduz o leitor ao período do Brasil Império, tempo de sesmarias, onde um coronel na região de Rio Pardo era a lei. Depois, a trama que se inicia e se encerra em uma fortaleza, dá um salto no tempo e passa a se desenrolar em 1890, logo após a Proclamação da República. 
Villela (2015) é impecável com o jogo de palavras, os diálogos entre as personagens e os detalhes que demarcam o tempo e o espaço. Trata-se de um romance histórico-social, regionalista, psicológico e atemporal. Há personagens com nomes bíblicos como: Ester, Josué, Rute, Miriam, Arão, Calebe, Noemi... Nem todos possuem conexão com as histórias da Sagrada Escritura, mas Joquebede, assim como na Bíblia, é mãe de Moisés, o filho mais velhoe o protagonista.
O romance Os filhos de Moisés (2015) passeia por fatos históricos como o fim da escravidão, ouro de Minas Gerais, as mandingas e tradições africanas, os casamentos arranjados, o poder dos coronéis, herança, traição, ódio, conflitos familiares... Em meio a tudo isso, acontece a complicada jornada de Moisés, tema central da narrativa: “O Rio de Janeiro deslumbrou Moisés. Se a casa de Davi o deixara admirado, a de seu tio Arão o punha maravilhado! (...) era um liliputiano diante de uma casa para Gulliver” (VILLELA, 2015, p. 129-130).    
O jovem Moisés, órfão de pai, primeiro trava uma batalha com o padrasto Bento e os três filhos do primeiro casamento dele. Casimiro, um dos filhos do padrasto, é seu antagonista, esposo de Sinhaninha (a poetisa), e com quem Moisés teve um caso e dois filhos que não pode assumir. As personagens femininas, apesar de viverem numa época opressora e de forte dominação masculina, possuem características peculiares que buscam desconstruir os paradigmas de sexo frágil, sem cultura, não atuantes etc.  
Conforme Ladeira (1989), é interessante esse feminino singular, trata-se da mulher diante dela mesma, como ser humano, pensando em si própria dentro do universo, como ponto atuante, não servil: “parece ter havido um momento em que a mulher considerou questionável essa pluralidade habitual e partiu para descobrir seu lado singular, até então sufocado (LADEIRA; COELHO, 1989, p. 86).
Para Josef (1989), a partir do século XIX, as mulheres, em número cada vez maior, entram no mundo da literatura e do jornalismo: se levarmos em conta a situação da mulher numa sociedade, numa época determinada, digamos a nossa, é claro que sua ficção e poesia vão nos transmitir essa posição específica (JOSEF; COELHO et al., 1989, p. 46).
Segundo Josef (1989), esse é o caminho para uma escrita que não se maneja a partir das estruturas mentais de uma supercultura alheia e alienante, mas de um lugar e experiência própria. Participando desse desenvolvimento da escrita feminina, Lúcia Milani Piantino, autora do romance Boinu (1994), pertence a essas escritoras que vão além do elemento estético. Reconhece a relação entre o eu e o mundo e denuncia as contradições e deficiências da sociedade, não só da relação individual, como da própria sociedade em que vivemos. 
Boinu (1994) é um romance que trata de um tema incomum nas letras: o preconceito racial entre brancos e índios e a solidão dos mestiços dessas raças.  Pela obra, Lúcia Piantino foi agraciada com o prêmio “Graciliano Ramos”, em 1992, pela União Brasileira de Escritores, em cerimônia realizada no Centro Cultural da Academia de Letras, no Rio de Janeiro. 
Conforme a crítica Castro Klaren “a condição de latino-americana oferece possibilidades inusitadas de recuperação de nossos conteúdos históricos, de romper o estabelecido pelo discurso dominante, para originar o lugar de uma nova palavra” (apud Coelho 1989, p. 55). Assim, escritores podem resgatar nosso processo histórico, questioná-lo, não aceitar o que nos impuseram pela colonização, por uma cultura que veio de fora.  
Em Boinu (1994), o texto de orelha, escrito pelo professor Célio Pinheiro, resume a distinção desse livro escrito por Lúcia Piantino: privilegia as pinturas paisagísticas em construções poéticas e altos momentos de riqueza vocabular, equilíbrio de significantes e significados, combinatórias de fonética enleante e um resultado final de grande poesia.”  
De fato, o espaço romanesco do livro é profundamente atraente e descritivo. Logo nas primeiras páginas o leitor é convidado a mergulhar no universo da gente de Lalima, na região do Pantanal: “Despontando em meio ao embaçado da hora, flamboyants coroados de vermelho erguiam suas flores lá em cima, buscando curiosas um espiar ao dia chegante. (PIANTINO, 1994, p. 5)  
Segundo o glossário do livro, a palavra indígena boinu significa irmão de sangue, companheiro, amigo. Boinu (1994) é uma narrativa que aborda o conflito de Jerônimo ou Anãnu, narrador-personagem e personagem central, que tenta compreender seu próprio conflito de bugre-branco. É amigo ou inimigo do seu povo? Adulto, Jerônimo, então fazendeiro, passa por uma autoanálise, também é Anãnu, filho da índia terena Cati e do branco Acácio, e neto do velho Diogo, homem poderoso da região: “assim que voltou a olhar para as bandas de Lalima, sentiu a distância maior, sempre crescente, entre ele e aquele outro mundo, lugar onde seu lado sombrio há muito se instalara de vez.”  (PIANTINO, 1994, p. 5)  
De acordo com Ladeira (1989), a mulher é um ser humano que pode escrever, como o homem, obras boas, medíocres ou más. “Quando vamos escrever ninguém pensa, sou homem, ou sou mulher, então vou escrever deste modo ou daquele... Sou de esquerda ou de direita, logo devo escrever assim ou de outro jeito” (LADEIRA; COELHO et al., 1989, p. 87).  
Assim como Graciliano Ramos (apud Coelho, 1989, p. 87), Ladeira (1989) acredita que o autor não precisa se fixar na sua linha política. Seria a sua linha, de qualquer maneira. O que uma pessoa cria está muito dentro dela. A identificação acontece, naturalmente, quando há uma real entrega do escritor (LADEIRA; COELHO, 1989). É o que se percebe no livro de Piantino (1994). 
Anãnu ou Jerônimo, a personagem principal, passa por vários conflitos pessoais e sociais durante a trama. Detestava seu progenitor, mas passou a trabalhar e morar na fazenda como um bugre que ganhou a simpatia de D. Amália, que era sua avó paterna, mas não sabia disso. Sem o consentimento do avô materno, Togu, a partir dos 12 anos, Jerônimo passa a conviver com sua família paterna, quer agradar os avós e entrar na rotina dos brancos, fazendo de tudo para agradar e se adaptar. E na adolescência, passa a nutrir uma paixão por Violeta, menina loira com traços parecidos com os da santa da igreja e do calendário, a filha de D. Ângela, esposa do seu pai branco. Adultos, passam a viver uma relação de amor e ódio. 
Além do narrador-personagem, voz masculina, há também o narrador-observador, que contempla a narrativa de forma objetiva e apresenta ao leitor o drama da personagem central: “Ele, Jerônimo, era um caso singular, diferente e que talvez só ocorresse um caso igual ao seu em cada dez mil outros índios” (PIANTINO, 1994, p. 32). Jerônimo, sabia que a assimilação de seu povo à sociedade regional não era assim tão simples, ainda que a integração econômica dos índios se desse amplamente, constituíam-se apenas em mão de obra. Enquanto isso, ele era o novo senhor da Fazenda Charneca: “abandonado em seus domínios, cercado de pessoas e posses, mas desamparado como um curumim perdido na mata” (PIANTINO, p.137, 1994). 
Jozef (1989) diz que o discurso da mulher foi sempre um discurso submisso que procurou seguir aos códigos masculinos. Mas ultimamente, a literatura feminina tem se caracterizado por um desejo de transgressão a esses códigos e ao nível da linguagem. A escritora busca escrever não só sobre o que era proibido, como falar sobre sexo. A mulher também quer escrever sobre libertação política, conflitos sociais, contestar a condição humana e não apenas a condição feminina. Conforme Coelho (1993), da submissão ao modelo, a escritora passa à busca de uma nova voz feminina. E é justamente isso que encontramos nas obras de Piantino (1994), de Villela (2015) e de Goulart (2011)
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio de levantamento e de leituras interpretativas das obras, este artigo aborda a produção literária feminina de Araçatuba, contemplando o período entre 1980 e 2016. A pesquisa bibliográfica contribuiu com o registro de 71 títulos e suas respectivas autoras,realizando considerações analíticas do universo literário criado por mulheres, em 10 desses livros: O Alzheimer do vovô (2016), de Rita Lavoyer; A arca da bicharada Vol. 1 (1985), Larissa e as estrelas (2014) e Porta-retrato (1995), de Marilurdes Campezi; Instantâneos(1997) e Vinhos (2003), de Cecília Ferreira; Ciranda de Vidro (1998), de Cidinha Baract; Boinu (1994), de Lúcia Piantino; O diário de vó Lina (2011), de Emília Goulart; Os filhos de Moisés (2015), de Maria Luzia Vilela.
Detectamos que as escritoras araçatubenses escrevem sobre a cidade, família, sentimentos, experiências, memórias... Memórias que correm fluídas nos textos, embaralhadas nos tempos vividos que se fundem na emoção do recordar/viver. De modo geral, a ficção das escritoras araçatubenses possui uma linhagem humanista e particular, em que permanece uma paixão peculiar pela vida no interior e pelo ser humano em si. 
Conforme se pôde observar nas obras femininas araçatubenses, é possível perceber no decorrer dessas últimas décadas, um aprofundamento da consciência crítica da mulher escritora. Uma consciência crítica não só em relação a si mesma, mas também à tarefa que lhe cabe desempenhar, tanto no âmbito da criação literária quanto no da sociedade em mudança. Detectamos essa evolução, mas ressaltamos que ela está acontecendo paulatinamente. 
Há formas estereotipadas e de rasa estruturação narrativa em algumas obras, mas é possível perceber que está acontecendo uma ruptura com as estruturas tradicionais, como a escrita voltada para os pequenos dramas interiores. Nota-se que o leque de estilos, problemáticas, estruturação e temática se ampliou, inclusive na produção infantojuvenil. Se nas décadas de 80 e 90, nosso levantamento aponta o predomínio da produção literária infantojuvenil, a partir de 1991 é possível ver outras formas literárias, como contos, poesias e romances, ganharem um pouco mais de espaço. 
As vozes femininas inovadoras se desenvolvem em diferentes chaves na produção ficcional voltada para o leitor infantil ou adulto, revelam-nos uma mulher escritora que interroga as realidades, que luta com as palavras – buscando um novo conhecimento de si, do mundo e dos outros. O leque de temas se abre cada vez mais, cedendo lugar às sondagens existenciais, ao ludismo da invenção literária, à redescoberta dos mitos... Afinal, o que caracteriza a obra feminina é essencialmente sua formação sociocultural, sua percepção ideológica e visão de mundo. 
Segundo Lúcia Vianna e Márcia Guidin (2003), muitas mulheres brasileiras escreveram ao longo do século XX e nem sempre se teve notícia de tais escritos. Neste mesmo período se consolida a participação feminina na vida intelectual e cultural brasileira, do mesmo modo que se amplia o interesse dos leitores (em grande parte constituídos de mulheres) pelo que as mulheres escrevem. 
E para Cremilda Medina (1989), a qualidade singular se sobressai na pluralidade quantitativa. Por isso, precisamos do exercício quantitativo para que se chegue a uma manifestação qualitativa, específica, de grandeza singular: “O artista singular é um artista que sabe trabalhar com o ser humano e tem uma visão de mundo sobre o ser humano que ultrapassa a barreira sexual” (MEDINA; COELHO et al., 1989, p. 39).
Esperamos que este trabalho possa trazer a público um panorama sobre a produção literária feminina de Araçatuba. O conjunto de obras, aqui reunidas e analisadas, exibe caminhos distintos percorridos pelas escritoras araçatubenses, em diferentes épocas e contextos. Lembramos que, por meio dessa trajetória, a mulher escritora busca consolidar sua progressiva inclusão na cena literária e na vida cultural da cidade. E este estudo se propõe apenas como ponto de partida desta discussão.

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