AGENDA CULTURAL

10.1.07

A felicidade na morte

Hélio Consolaro

Aquele rato estava mesmo arriscando a vida. Quando o vi pela primeira vez, eu lia jornal na área de serviço, bem cedinho. Ele passou garboso, saindo da cozinha, indo para um corredor sem saída, passando por baixo de um portão de ferro. Era um tisco, mas era um rato.

Miguilim viu, nem ligou. Só levantou as orelhas, nada mais, uma espécie de aliança estratégica entre canino e roedor contra os felinos do quintal.

Com o jornal na mão, fui procurá-lo no corredor, vizinho do terreno baldio. Era um beco sem saída. Seria morto por meu chinelão. Nada de rato. Nenhum buraquinho! Teria subido o muro? Rato sobe muro? Era um guerrilheiro.

No outro dia de manhã, a Japa viu. Pá daqui, pá de lá. Aquele barulhão. Ele escapou novamente pelo mesmo corredor. Nem fui dar socorro! Era mesmo uma vã perseguição. Fiz até humor:

- Se houver alguém sem calcinha, aí, cuidado! Haverá o duelo da aranha e o rato!
Passaram-se dois dias. Havíamos até esquecido o camundongo. Ao chegarmos em casa, à noite, passou aquele risco preto. O ratinho estava na cozinha. Escondeu-se atrás do microondas, passou atrás da geladeira, correu até a porta, que estava fechada, mas passou por debaixo dela. E foi para a sua fortaleza, o corredor. Atingiu o seu habitat, o terreno baldio.

Aquilo já era um desafio. Nada de veneno! Nada de ratoeira! Era uma covardia usar tais artifícios. Prometi a mim mesmo que ia matá-lo no chinelo.

- Cretino! – gritei bem alto. Era meu grito de guerra.

No outro dia, o atrevido perdeu a hora, apareceu durante o dia. Lá pelas nove horas da manhã na cozinha. Quatro pessoas para pegá-lo. Não escaparia. Foi uma bagunça.

- Pega aí, Du! – gritou a Japa ao meu sobrinho.

- Foi atrás do microoondas, tio!

E afasta o micro do lugar. Ele correu até o fogão. Bate no fogão. Passou pela fruteira. E zás por baixo da porta. A perseguição foi ferrenha no transcurso da área de serviço, mas ele ia rente à parede, não houve jeito, o infeliz alcançou o corredor. Até abrir o portão. O rato sumiu nas montanhas do Afeganistão.

Eu estava me sentindo o Tom, o gato da história Tom & Jerry. Corre atrás do rato, persegue, mas nunca pega o vilão. Ontem, me levantei. Sou o madrugador da família. Ouvi o barulho dele, passando pela lixeira. Calmamente, vedei a passagem por baixo da porta. Chamei a Japa:

- Chegou a hora da vingança!

Ele fez o mesmo trajeto. Microondas, passando pela pia, fruteira, embaixo da geladeira, até a porta. Pá daqui, pá de lá. Nada. Porta vedada, ele voltou. Entrou no fogão. Afastei-o, bati nele, sacudi-o. Nada. Com um sorriso sádico, pedi a Japa que botasse fogo no forno. E fiquei agachado na porta com o chinelo na mão.

Quando a coisa esquentou, ele saiu. Foi até a porta. Vedada. Eu pá! Esmaguei o desgraçado. Chamei o Eduardo:

-Venha ver a façanha!

Peguei o rato morto e fiquei de pé. Sentia-me o George W. Bush segurando o Bin Laden, morto, pelo rabo. Ríamos. Uma hora depois, ainda ríamos, lembrando a morte do rato. Foi um momento de felicidade familiar sem par. A felicidade na morte.

Um comentário:

Ventura Picasso disse...

Na minha opinião, e pelo pouco que te conheço, Consa, quando voces (vc e o rato) ficaram frente a frente, cada um correu para um lado. Posso escutar sonhando o seu grito de pavor:"Quero meu advogado!";SOCORRO!!!