Hélio Consolaro*
A leitura de um texto exige muitos conhecimentos, operações mentais mil, por isso Paulo Freire dizia que saber ler o mundo é uma exigência prévia para ser um bom leitor de textos.
Se tais requisitos são exigidos na leitura de um texto temático, informativo, isso se multiplica ao se tratar de texto literário que exige uma leitura nas entrelinhas, por trás das linhas (subtexto). Vamos ao exemplo.
O poeta Oswald de Andrade (1890-1954), poeta brasileiro do Modernismo brasileiro, 1.ª geração, irrequieto, vida atribulada, que fazia poemas curtos, com ironias e muita crítica. Ele escreveu o seguinte poema:
Título: Verbo Crackar
Eu empobreço de repente
Tu enriqueces por minha causa
Ele azula para o sertão
Nós entramos em concordata
Vós protestais por preferência
Eles escafedem a massa
Sê pirata
Sede trouxas
Abrindo o pala
Pessoal sarado.
Oxalá eu tivesse sabido que esse verbo era irregular.
Qualquer leitor mal-informado, sem conhecimentos históricos, vai bater os olhos no título e logo fazer a ligação do verbo “crackar” às drogas, o “crack”, droga tóxica, ilegal e derivada da cocaína, comercializada em forma de cristais inaláveis. Quando, na verdade, o poeta criou o neologismo baseado no “crack” (arrombo de cofre, quebra econômica) da Bolsa de Nova York em 1929 que gerou uma crise mundial profunda.
No Brasil, predominava a monocultura do café, o reflexo da crise foi catastrófica, porque o produto é supérfluo em termos de consumo. Nessa época, montanhas de café foram queimadas, inclusive em Araçatuba, famílias, como a do poeta Oswald de Andrade, dormiram ricas e amanheceram pobres, havendo muitos suicídios. Com tais informações, passamos a entender melhor o texto.
A primeira estrofe é composta por verbos fortes, alguns indicam movimentos, retratando as emoções provocadas pela crise, como as pessoas empobrecidas reagiram. A segunda estrofe revela que algumas foram piratas, saquearam, se aproveitam da crise, outras, foram trouxas, ingênuas.
Na terceira estrofe, “abrindo o pala” é uma expressão popular da época que significava “retirando-se discreta ou furtivamente; escapar; fugir”. Quem fazia isso era gente grande, pessoal sarado, valente.
Na quarta e última estrofe, como Oswald de Andrade gostava de fazer, há um encerramento anedótico, inesperado, cruzando gramática com a realidade. Como a dizer que os conhecimentos gramaticais, tão a gosto dos poetas parnasianos, nada serviam diante da crise econômica.
O verbo “crackar” é gramaticalmente regular, não apresenta alterações no paradigma da conjugação verbal. Na verdade, ele é irregular em sua semântica (sentido), economicamente irregular, subvertendo a vida de todos.
O leitor poderá perguntar: que me vai ajudar na vida entender um poema de Oswald de Andrade. Se você consegue entender um poema, é um leitor qualificado, está acima da média dos brasileiros, não é um semianalfabeto. Isso é uma habilidade que vai diferenciá-lo como profissional, inclusive nos concursos públicos.
Ler não é apenas soletrar, nem só escanear textos. É associar, refletir, contextualizar, fazer sinapses.
*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras. Atualmente é secretário da Cultura de Araçatuba.
Um comentário:
Com neurônio ruim, não como fazer sinapses. Haja vista certas pessoas...deixa pra lá.
Postar um comentário