AGENDA CULTURAL

7.3.11

Brasileiro: povo que escreve mal


Escrito por Camila Kehl em Livros Abertos
Minhas leituras, que incluem jornais e revistas, me ensinaram que os melhores cronistas e escritores, aqueles que se destacam, são os que têm coragem de se expor. Além da escrita, que deve ser de qualidade, e da forma de abordar um assunto, que não pode ser trivial ou clichê, é fundamental oferecer o rosto a quem quiser bater; é essencial desnudar a alma e apresentar opiniões sinceras – doa a quem doer.
São esses pensadores honestos, transparentes e valentes os meus modelos. É neles que busco inspiração. Não tenho, pois, medo de dizer o que minha geração cala (vai ver pertenço à década de 60…). Se as pessoas realmente nascessem com algum propósito ou missão, estaria escrito que a mim cabe encher de lenha as fogueiras que já existem, mesmo as que ainda não ardem.
Trago, então, novas toras e um atiçador de chamas.
Deus do céu: como o povo brasileiro escreve mal.
Atenção: não incluo, nesta constatação, pequenos enganos quanto ao emprego da vírgula, ou a necessidade de recorrer vez ou outra ao Google para conferir a ortografia de uma palavra, ou escorregões eventuais nas concordâncias, ou acentos fora dos lugares, ou um ou outro deslize no que diz respeito à conjugação verbal. Isso todo mundo faz, claro, e qualquer um desses equívocos pode ser creditado ao cansaço, a uma dor de cabeça, à falta de concentração. Nada disso, portanto, desqualifica um intelecto. E dizem, ainda, que os que têm mais afinidade com as ciências exatas deixam a desejar no âmbito dos pronomes, dos artigos, dos substantivos. Quem não trabalha como redator, revisor ou escritor não precisa, enfim, ser impecável. Basta ter alguma noção.
O que quero dizer é que o povo brasileiro é, em geral, semianalfabeto, e brinca com as letras e as palavras de uma maneira descuidada que dói na alma dos apaixonados pela gramática. Massacram a lindíssima Língua Portuguesa e sequer demonstram algum sentimento de culpa.
No período em que trabalhei em agências de marketing digital, não era incomum que me designassem para mediar participações em concursos culturais – aqueles mesmos em que se deve escrever uma frase sobre qualquer coisa. Quando começava a ler as respostas enviadas pelos internautas, tinha vontade de congelar o tempo, sair do lugar, lançar mão de uma garrafa de uísque e chorar num cantinho.
Pontuação não existe; palavras difíceis são empregadas, sim, mas sem que se conheça seu real significado; “mais” vira sinônimo de “mas”; redundâncias são largamente utilizadas; letras maiúsculas e minúsculas não têm diferença alguma entre si; a ortografia leva uma cuspida atrás da outra, e pérolas como “conheser”, “conserteza”, “seje”, “menas” e “simplismente” são empregadas com certa frequência.
No caso dos concursos culturais, nem o desejo genuíno de ganhar um prêmio faz com que as pessoas escrevam melhor. E tudo porque elas realmente não têm o conhecimento necessário para tanto.
A pergunta é: por quê? O que motiva essa ignorância? De quem é a culpa pelo desuso do português e pela popularização desse dialeto?
Há dois casos, dois pesos e duas medidas.
Primeiro, há os filhos do Brasil que este não consegue enxergar: os donos de nada, os sem acesso, os sem chance. Fácil é criticar essa gente e sua fala e sua escrita – sortudos são os que aprendem a formar sílabas hesitantes –, mas não voltamos nossos cenhos franzidos e nossas expressões fechadas para eles e lhes estendemos as mãos que pendem de braços cruzados. Os pobres coitados nascem em meio à seca ou ao lixo e desde cedo cumprem o que lhes é imposto: trabalham para sustentar a família. Largam escolas e estudos e partem para a labuta, dia após dia, semana após semana. Em seus barracos miseráveis não há comida – por que haveria de ter livros? Mortos de cansaço (de tanto esforço e tanto sofrimento) e de barriga vazia, perdidos em meio à miséria e ao abandono, doentes de falta de informação, não há nada que sugira que sua sorte possa mudar. O Estado, claro, continua a fazer vista grossa, e seus representantes, como é de praxe, a desviar o dinheiro que poderia construir creches ou instituições de ensino que, por sua vez, garantiriam a ponte que, com o devido empenho, levaria essa gente sofrida a outro patamar.
O patamar da classe média emergente – essa que, sim, tem sua parcela de culpa no que diz respeito à ignorância abissal que nos engolfou e à hipnose coletiva que nos atingiu a todos, com os olhos pregados que estamos nas novelas e no BBB e na autopromoção descabida que impera no Orkut –, o patamar de quem tem algum estudo e que talvez tenha feito um curso técnico ou cursado uma faculdade, mas que está longe de atingir um nível satisfatório de cultura. Alcançamos um ponto, e me refiro principalmente a minha geração, a que começou a engatinhar na década de 90, no qual acumular conhecimento parece um hábito tão pretensioso quanto anacrônico.
Só se aprende a escrever (bem) lendo. Isso é um fato incontestável. Mas que criança vai deixar de lado uma boneca ou um carrinho e pegar um livro se os adultos não levarem a obra até suas mãozinhas? Os pais não ensinam aos filhos a importância de se frequentar livrarias ou bibliotecas públicas – eles mesmos a desconhecem. Claro. Quem é que vai ler quando pode navegar em blogs hilários? Quem é que vai queimar os neurônios com Saramago quando pode descobrir o que disse aquele cara famoso no Twitter? Quem é que vai prestar atenção ao que falava Zaratustra se pode escutar as palavras daquele participante do Big Brother? Quem é que vai abrir um clássico quando pode facilmente copiar um apócrifo na Internet e colar no perfil do Orkut? Quem é que vai malhar o cérebro em um tempo em que a bunda é tão valorizada?
Em última instância, ler exige esforço – e este pode ser descrito como algo que ninguém mais quer fazer. Com uma vida atribulada, tumultuada, estressante, quem é que quer chegar em casa e relaxar com Tolstói? Ninguém. Mais fácil ligar a televisão.
Ler bons livros nos parece, atualmente, perda de tempo. É como um grito mudo e coletivo que diz que, agora, temos diversões mais interessantes, movimentadas e agitadas. Há uma crença velada de que a literatura de qualidade ficou para trás, e é, sim, coisa de gente chata e pedante e todos os outros adjetivos que quem não lê consegue formular (são poucos, mas figuram nesta linha – mas também podem chegar a definir os ávidos leitores como deprimentes, aborrecidos, melancólicos, melodramáticos e solitários).
Estigmatizamo-nos e, assim, nos perdemos.
Pouco a pouco, os livros de gramática lindíssimos de Celso Pedro Luft vão acumulando mofo, bolor e pó nas prateleiras. Quem é que ainda quer estudar sintaxe?
Saramago dizia que ainda acabaríamos por retornar aos grunhidos. Eu concordo.
“Lutei contra a ignorância, mas fui vencido.”  Prof. Dr. Cláudio Moreno

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