AGENDA CULTURAL

7.6.11

Numa tarde de maio

Tito Damazo*

Fafá de Belém em Araçatuba, na praça Getúlio Vargas,
Virada Cultural  2011
            A praça improvisada para um espetáculo de massa. Tal qual acontece com outras praças de outras cidades. O povo reunido espera. No megapalco com seus megassons, os responsáveis pela infraestrutura ajustam aparelhagens, testam sons.

            Na praça restam algumas réstias de sol que vazam pelas frestas dos entreprédios. As pessoas passam o tempo. Uma brisa outonal brinca entre as folhas, as folhagens, as pessoas. É chegada a hora em que os pássaros se recolhem. Hora em que as árvores da praça se servem para repouso.

            É quando anunciam que Fafá de Belém vai entrar no palco. Aplausos. E ela vem com seu sorriso característico, toda vestida de branco. Saia rodada. Véu à cabeça estendendo-se pelo torso. Decerto para velar sua outra marca registrada. A esfuziante Virgem paraense apanha o microfone, envolvendo-o com suas mãos postas. Compunge-se e solta sua voz espargindo a canção Ave, Maria. O povo faz o coro. A hora era propícia. É a hora em que o sino toca (tocava), anunciando a hora da Ave, Maria. A hora do ângelus. O povo faz o coro.
            Depois, ela sacode a compunção, cumprimenta o público com sua inconfundível gargalhada e salta do sagrado para o profano. Uma canção vibrante, e o manto se transmuta em saia de cigana. Ela requebra. O corpo todo dança feito o de uma passista de escola de samba. As pernas, a coxas, se entremostrando, arrancam frisson, palmas.

Fafá vai incansavelmente cantando suas canções de maior domínio daquele seu público. E não para de bailar, enquanto canta. Baila e canta. Canta e baila. É a artista que veio onde o povo está. A praça é pura interação entre o palco e o público. Ela incita, o público canta. O público pede, ela responde.

Mas o lusco-fusco invadia a praça. E acima do público, do palco, dos prédios acontecia um outro espetáculo. O céu já acinzentado, o descomunal palco. Os pássaros, os artistas. Também dançavam em requebros vertiginosos.

Muito acima, nuvem de andorinhas ajustadas, sincronizadas, cabriolavam em voos hipervelozes. Deslocavam-se a toda velocidade de um lado para outro. Abruptamente desciam a prumo dos prédios e imediatamente subindo.

Mais embaixo, outro espetáculo cujos protagonistas eram uma miscelânea de outras espécies de pássaros. Em voos rentes às copas das árvores, contornando-as e mesmo muitos as penetrando, produziam um barulho tamanho. Era a hora em que os pássaros dormem. Não há como retardar. Impossível aguardarem o fim do show para depois então dormir. A natureza é intransigente. O som estridente percutindo o ar com aquela voz possante desestabilizava-os.

Era uma circunstância contraditoriamente singular. O aflito da passarada ante aquela intromissão de seu espaço tornara-se um espetáculo à parte. E tão arrebatador que por momentos o público, olhos todos para o céu, vibrava a cada diferente manobra, a cada diferente cabriolagem do passaredo. E ao desavisado ou ausente pareceria algo em consequência do prazer que causa o show de Fafá. Ela mesmo, percebendo que não era o motivo, também olhou para o céu e soltou sua sonora gargalhada.

Mas, embora naquele estado, os pássaros foram se acomodando. Nada havia senão que dormir. Assim era. Assim teria que ser. E tudo tomou seu lugar depois que aquele efêmero espetáculo acabou.

O público todo tornou a ser de Fafá. E ela não se mostrava incomodada, não perdera a performance, enquanto prosseguia com seu show de mulher cantora simpática, bonita, esplendendo sua sensualidade.

Antes que, como os pássaros, ela também se emudecesse, algum tempo ainda prosseguiu o espetáculo. O público de novo inteiramente seu. Ela inteiramente do público. Apenas silente, plena no espaço, talvez completamente despercebida, ficara a lua que, pela simetria de uma fresta de dois prédios e duas palmeiras, a tudo espiara e continuava espiando.

*Tito Damazo é doutor em letras, escritor Araçatuba.





3 comentários:

Lu Lopes e Castro disse...

Que bonito ter esse dom de retratar com palavras todo esse espetáculo que presenciei nesta tarde de maio. De fato, foi assim mesmo que tudo aconteceu. Senti a presença de DEUS e dos anjos nessa tarde,nesse local.
Parabéns Tito Damazo por expressar tao bem esse esse acontecimento especial, nesse dia, nessa tarde, em nossa cidade.

Anderson Augusto Soares disse...

Belo texto, retrato fiel e poético do show. Obrigado, Hélio, por colocar meu vídeo junto. Consegui pegar o lance das andorinhas (embora tivesse perdido revoada maior). De todo modo, fico honrado de o meu vídeo complementar um texto de Tito Damazo. Abraços.

Patrícia Bracale disse...

Que belo ver a arte do professor Tito com as palavras.
Realmente foi um espetáculo presenciar a beleza e sensualidade da mulher brasileira, com o poder arrebatador das andorinhas e o olhar entre o prédio e as palmeiras da lua, nesse nosso céu maravilhoso de Araça City.