AGENDA CULTURAL

3.9.11

Criação Literária


Frei Betto*  


Publicado no boletim O ESCRITOR, da União Brasileira dos Escritores, junho de 2011


Como sublinha Bartolomeu Campos de Queiros, tudo que  existe – esta publicação, o computador, a cadeira em que me sento, o cômodo no  qual me encontro – foi fantasia na mente humana antes de se tornar realidade.  Daí a força da literatura de ficção. Também ela foi fantasia na mente do autor  e remete o leitor a uma realidade onírica que lhe possibilita encarar a vida  com outros olhos. A fantasia impulsiona todos os nossos gestos, atitudes e  opções.


A ficção funciona como um espelho que faz  o leitor transcender a situação em que se encontra. O texto desvela o contexto  e impregna o leitor de pretextos, de motivações que o enlevam, aquele  entusiasmo de que falavam os gregos antigos, estar possuído de deuses, de  energias anímicas que nos devolvem ao melhor de nós mesmos. 


Toda ficção, narrativa ou poética, é des-cobrimento,  revelação. Somos múltiplos e, ao ler, uma de nossas identidades emerge por  força do encantamento suscitado pela quintessência da obra ficcional: a  estética.
A literatura ficcional não tem que ser de  esquerda ou de direita. Tem que ser bela. Fazer da ficção um palanque de  causas é aprisioná-la numa camisa de força, transformando-a num espelho que  não reflete o leitor, reflete o autor e seu proselitismo. 


A ficção não tem de ser engajada, o escritor sim, tem  o dever ético de se comprometer com a defesa dos direitos humanos neste mundo  tão conflitivo e desigual.


No prólogo do evangelho de João, um dos textos mais  poéticos da Bíblia, só comparável ao Cântico dos Cânticos, diz que “o  Verbo se fez carne”. Na arte literária a carne – a criatividade do autor – se  faz verbo. Instaura a palavra, que organiza o caos.


No Gênesis, Javé cria o Universo pelo poder da  palavra. Ele se faz palavra, manifestação que nos remete, como na obra  ficcional, à transcendência (o autor sobrepassa a cotidianeidade ou lhe  imprime novo caráter), à transparência (o texto reflete o que está contido nas  entrelinhas), a profundência (a narrativa ou o poema nos convida a algo mais  profundo do que percebemos na superfície da realidade).


Ler ficção é uma experiência extática – estar em si e  fora de si. Somos alçados ao imaginário, induzidos à experiência da catarse,  de modo a oxigenar a nossa psiquê. A estética nos imprime um novo modo de  encarar as coisas. Como lembra Mário Benedetti, a literatura não muda o mundo,  mas sim as pessoas. E as pessoas mudam o mundo.


A estética literária nos envia ao não dito, à esfera  do desejo, suscitando-nos sonhos, projetos, utopias, do encontro com o  príncipe encantado (Branca de Neve) ao reencontro amoroso com a opressiva  figura do pai (A metamorfose, de Kafka, e Lavoura arcaica, de  Raduan Nassar). Como assinala Aristóteles, a poética completa o que falta à  natureza e à vida. A arte não se satisfaz com o estado factual do ser.  Convida-nos à diferença, à dessemelhança, ao tornar-se.


Suscitar em crianças e jovens o hábito da leitura é  livrá-los da vida rasa, superficial, fútil, e educá-los no diálogo frequente  com personagens, relatos e símbolos (a poesia) que haverão de dilatar neles a  virtude da alteridade, de uma relação mais humana consigo mesmo, com o  próximo, com a natureza e, quiçá, com Deus.


*Frei Betto é sociólgo e escritor. Tem vários livros publicados

Nenhum comentário: