Para este blogueiro, artigo esclarecedor sobre este episódio da História do Brasil. Encontrei a revista em sala de espera de clínica odontológica.
Após 50 anos, renúncia de Jânio Quadros ainda intriga analistas
CARLOS HAAG |
Edição 182 - Abril de 2011 - revista Pesquisa - Fapesp
“Ele criou um modelo de marketing político individual que
ainda hoje atrai e influencia muitos políticos brasileiros. Era um novo
estilo, muito pessoal, de liderança política, apoiado num marketing que
reunia um sistema de comunicação baseado na autovalorização, nas
denúncias das irregularidades administrativas, no desprezo pelo
Parlamento e pela política e no uso sistemático da imprensa, com um
discurso sedutor para vários setores da sociedade. Quando, porém, ele
levou esse estilo para a Presidência, desprezando o Legislativo e usando
elementos dos partidos para ocupar cargos políticos, o sistema havia
mudado. O Legislativo se fortalecia e o Executivo ficou isolado, um
momento político desfavorável para que ele governasse como gostava”,
avalia a cientista política Vera Chaia, coordenadora do Núcleo de
Estudos de Arte, Mídia e Política da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) e autora de A liderança política de Jânio Quadros (Humanidades).
“O mais importante é entender que o império da vassoura preparou o
caminho para o domínio da espada. A política de Jânio de ‘governar é
punir’ transformou o país num imenso quartel de Inquisição. Seu governo
foi decisivo para reforçar o papel das Forças Armadas, como foi o
pós-1964. Seu estilo e sua renúncia contribuíram, também, para
desmoralizar o processo eleitoral e a participação democrática. A
descrença de que ‘o povo não sabe votar’ virou, a partir dele, uma arma
ideológica para incutir no povo uma percepção negativa de seus direitos
políticos de cidadão. Se seu voto não vale nada, por que votar?”,
analisa a socióloga Maria Victoria Benevides, professora titular da
Faculdade de Educação da USP e autora de O governo Jânio Quadros (Brasiliense).
Jânio morreu sem nunca ter explicado as razões da sua renúncia. O mais
próximo que temos é a suposta conversa que teve com o neto, Jânio
Quadros Neto, no leito de morte, revelada por este em 1996 em Jânio Quadros: memorial à história do Brasil (Rideel):
“A minha renúncia era para ter sido uma articulação. Nunca imaginei que
ela fosse de fato aceita. Renunciei à candidatura à Presidência em 1960
e ela não foi aceita. Voltei com mais fôlego e força. O ato de agosto
de 1961 foi uma estratégia política que não deu certo. Também foi o
maior erro político da história republicana do país. O maior erro que eu
já cometi. Renunciei no Dia do Soldado porque quis sensibilizar os
militares e conseguir o apoio deles. O Jango, na época, era inaceitável
para as elites e achei que todos iam implorar para eu ficar. Era para
ter criado um clima político e imaginei que o povo e os militares
sairiam às ruas para me chamar de volta. O brasileiro é muito passivo.
Ninguém reagiu. As forças terríveis eram tudo aquilo que mandava na
democracia prostituída que governava o Brasil. Sem dúvida, o Congresso
era a pior. Fui prefeito e governador e consegui administrar o
Legislativo. Achei que Brasília seria uma continuidade, mas aquelas
pressões não são nada comparadas com a Presidência”.
Verdade ou mais uma das “versões” após um gole de uísque? Talvez,
passados 50 anos da renúncia, seja mais importante entender o “fenômeno”
janista, suas consequências e, acima de tudo, a permanência de valores
explorados magistralmente por ele que ainda permanecem na visão política
brasileira. “Seu repúdio aos partidos políticos e aos compromissos da
vida pública refletem qualidades ainda socialmente valorizadas e
constituem a esperança de que as transformações almejadas dependem de um
líder corajoso, independente e disposto a chefiar uma verdadeira
cruzada redentora. Esse diagnóstico sobre a sociedade brasileira, da
existência de uma ‘crise moral’, é bastante persuasivo”, nota Maria
Teresa. “A força de Jânio se deveu à simplificação que ele fez no mundo
político, dividido entre bem e mal, e a aparente eficácia das soluções
moralizantes. Responsabilizando os políticos e os ‘tubarões’ por todos
os infortúnios do passado e do presente, ele aparecia como diferente dos
modelos conhecidos.”
O estudo recente A desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas,
coordenado pelo cientista político José Álvaro Moisés, apoiado pela
FAPESP, revela, por exemplo, que quase dois terços dos brasileiros não
confiam em parlamentos, políticos e governos. “Há um profundo descrédito
da opinião pública sobre partidos e o Congresso que reforça a tradição
brasileira de personalização das relações políticas, em que lideranças
individuais se sobrepõem às instituições de representação. Existe hoje,
no país, uma preferência por uma ‘democracia sem Congresso e sem
partidos políticos’. As consequên-cias disso já são visíveis em vários
países da América Latina com governos que têm apoio da massa, são
governos personalistas que ampliam sua legitimidade com ataques diretos
contra partidos e contra o Parlamento”, diz Moisés. “É particularmente
brasileira a manipulação populista da corrupção política como tema
central do debate político num país tão carente de discussões públicas
de fundo sobre escolhas coletivas fundamentais”, observa o sociólogo
Jessé Souza, da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Democracia e subjetividade (Liberdade de Expressão).
“O apelo fundamental do discurso janista era o moralismo, se
traduzindo na denúncia da política, vista como ‘politicagem’, e dos
partidos políticos, vistos como camarilhas interessadas apenas nas
benesses do Estado, atacando mesmo o seu próprio partido. Ele se dizia
independente, fiel apenas a seus princípios”, lembra Maria Teresa.
Segundo a pesquisadora, apresentava-se, desde a eleição como prefeito,
em 1953, como uma liderança acima do bem e do mal, com força para o
combate contra o “nefasto”. “Ele deixava entrever o modelo de uma
sociedade atomizada, sem nenhum tipo de organização partidária, bastando
para guiá-la um líder forte o bastante para extirpar o mal. Não
apresentava programas de governo e centrava sua plataforma no binômio
‘honestidade e trabalho’, prometendo varrer a corrupção, moralizando a
administração”, explica Maria Teresa. “Desde o início, como vereador em
1947, foi construindo a imagem de um político diferente e sua
plataforma, então, atraía setores da classe trabalhadora. Fazia visitas
aos bairros periféricos, sempre acompanhado por jornalistas que
documentavam essas passagens para que ele as usasse como material de
seus discursos na Câmara”, lembra Vera. “Jânio estava sempre nas
manchetes diárias dos jornais. Quando não havia fatos políticos, ele
mesmo os criava, com grande habilidade, desde os ‘bilhetinhos’ até seus
trajes incomuns na Presidência. Sua agenda foi repleta de medidas
bombásticas mesmo nas questões nas quais governos não se imiscuem, mas
que rendiam manchetes, como rinhas, uso de lança-perfumes e de biquínis
nas praias. Chegou ao cúmulo de ditar regras de moralidade em concursos
de beleza feminina”, nota Maria Teresa. “Era um moralismo que não
distingue as esferas pública e privada, exaltando, ao mesmo tempo, como
plataforma política, a moral conservadora dos bons costumes e pregando a
moralização pública baseada em regras de funcionamento racionais e
modernas. Um moralismo ambíguo na distância entre discurso e prática”,
completa Vera Chaia.
Enquanto isso, em seus discursos, transmitia a ideia de que os
políticos e os partidos eram ineficazes e desnecessários e que a “boa
política” seria exercida por homens não comprometidos com ideologias. “O
estilo autoritário, moralista e personificado de Jânio evocava um
‘populismo de direita’, militarista, antiparlamentarista e associado ao
grande capital. Dirigido ‘a todas as classes e ao conjunto da nação’,
acabava diluindo o significado de povo e massa. Ele não significou
apenas a falência do sistema partidário como o populismo levado à sua
contradição mais extrema e que se volta contra si próprio”, acredita
Maria Victoria Benevides. Não sem razão, o mote do janismo, observa Vera
Chaia, era a forte presença da autoridade governamental confundida e
identificada com as ideias e ações de um único homem, a quem se confere o
poder de ordenar, decidir e fazer obedecer respeitando as leis de forma
singular, já que imprime a marca inconfundível da vontade pessoal.
“Nesse contexto, o sistema partidário e o Congresso são peças
perturbadoras da ordem, e o pluralismo intolerável, já que legitimaria
posturas como a da esquerda”, fala Vera. No lugar dos partidos, Jânio
tinha o seu staff administrativo, grupo de apoio que aceita o
poder concentrado nas mãos do líder. Eles é que estabeleciam a relação
entre ele e os partidos, a imprensa, outros centros de poder e a
sociedade civil. “Tudo se concentrava numa forma autoritária de exercer o
poder, entender a sociedade brasileira como um organismo desordenado e
incapaz de se estruturar a partir de movimentos da sociedade civil e da
opinião pública, o que exigiria uma forte autoridade governamental. A
política, para Jânio, era entendida por ele como uma técnica
administrativa, orientada por critérios pragmáticos de eficiência,
concebida de forma antipolítica.”
O notável na ascensão de Jânio é de como ele soube se beneficiar do
desenvolvimento da sociedade brasileira após as conquistas do governo de
Juscelino Kubitscheck. “O desenvolvimento do governo JK despertou
camadas sociais para demandas que não se exprimiam apenas em obras
públicas ou empregos, mas no alargamento efetivo dos limites da
participação política”, nota Maria Victoria. “Havia uma crescente
insatisfação política de vários setores sociais com a alta do custo de
vida, despertados para a participação política e para a reivindicação
justamente pelos frutos do desenvolvimento num governo politicamente
aberto”, continua a pesquisadora. Esse descontentamento, porém, não se
traduzia numa “esperança de proteção pessoal”, mas de justiça, pois o
que contava para ele não é a expectativa de favores, mas a capacidade de
trabalho e o mérito.
“Este ideal de justiça é permeado por um conteúdo moralista. O
eleitor de Jânio acredita que o principal problema da sociedade é a
corrupção e que para combatê-la basta um líder que se proponha a
varrê-la, uma cruzada redentora”, nota Maria Teresa. “Essa varredura,
porém, tinha várias versões de ‘sujeira’. Podia ser a ‘sujeira da
corrupção’ como também da ‘plebe’, que quer se mostrar, em toda a sua
‘sujeira’, participar, reivindicar e ‘sujar’ o palco”, lembra Maria
Victoria. Assim, ao mesmo tempo que era o paladino do “tostão contra o
milhão”, o homem que comia sanduíche de mortadela nos comícios, feitos
mesmo à luz de velas, Jânio foi, desde os primeiros passos na política,
apoiado financeiramente pelas grandes corporações, em especial pela
indústria farmacêutica e pelos meios de comunicação, contando ainda com o
apoio dos grandes proprietários rurais, como Auro de Moura Andrade.
O mesmo, segundo analistas, pode ser dito de sua maior ousadia
política, a política externa independente, que o aproximava de países
socialistas, dando munição para seus inimigos, como Carlos Lacerda. “Ele
quis cortejar as esquerdas com um presente de grego e comprou, sem
necessidade e sem lucros, uma briga com a Igreja, os militares e os
setores mais conservadores do país”, afirma Benevides. Afinal, continua a
professora, ao mesmo tempo que seguia para o Leste a Missão Dantas, o
embaixador Roberto Campos corria ao Oeste Europeu e o embaixador Walter
Moreira Salles para os EUA a fim de negociar dívidas e levantar
empréstimos, bem como para tranquilizar os aliados sobre a permanência
do Brasil no bloco capitalista. “Forçado a atender às exigências do FMI e
convencido de que os EUA, por causa da crise cubana, seriam mais
benevolentes quando confrontados com um clima de urgência internacional,
Jânio fez o que podia para criar alarme sobre os rumos de seu governo e
aumentar o poder de barganha nas mesas de negociação”, escreveu o
soció-logo Carlos Estevam Martins em seu artigo “Brasil-Estados Unidos
dos anos 60 aos 70” (Cadernos Cebrap).
O PROJETO |
A desconfiança dos cidadãos nas instituições democráticas – nº 2004/07952-8 |
Modalidade |
Projeto Temático |
Coordenador |
José Álvaro Moisés – USP |
Investimento |
R$ 224.161,00 |
Da mesma forma oportunista, Jânio tentou repetir fórmulas
bem-sucedidas em seus governos paulistas no exercício da Presidência e
na política nacional. “Ele tinha a pretensão de independência em relação
às forças que o apoiaram e logo surgiram as desavenças com a UDN
concentradas no fogo de Lacerda contra sua gestão. A clara dissonância
de suas políticas interna e externa estimulava descontentamentos à
esquerda e à direita. Boa parte da classe política se sentia abandonada,
traída, incapaz de controlar as idiossincrasias do presidente. Um
sentimento que, no entanto, não era compartilhado pela população, para
quem a popularidade de Jânio era elevada”, diz Maria Teresa. Fruto de
uma estratégia janista que funcionava ainda mais com o progresso. “Por
estar em Brasília [foi o primeiro presidente a tomar posse na nova
capital], o contato com o povo e os comícios em praça pública ficaram
inviabilizados. Jânio, então, para se comunicar com o povo passou a usar
os meios de comunicação de massa: rádio e televisão”, diz Vera. Apesar
disso, não houve o movimento de massas esperado por ele com sua
renúncia, apenas os desdobramentos graves para a democracia nacional.
“Seu desprezo pelas instituições, em especial pelo Congresso, em favor
de um respeito exagerado pelos militares: não estariam aí fatores
importantes da crise que se ‘resolveria’ em 1964, com um regime
autoritário, repressivo e vingador? Não se pode negar a responsabilidade
do presidente, com sua renúncia, que quis governar acima dos partidos e
com apoio dos militares. O personalismo autoritário de Jânio, o seu
bonapartismo, o moralismo que retoma o tema do golpismo, atenuado
durante a segunda metade do governo JK, contribuíram para o golpe”,
acredita Maria Victoria. “Ele consolidou a intervenção militar na cena
política; exacerbou a extrema direita que se organizou e mobilizou por
conta de sua política externa; por fim, sua renúncia radicalizou os
setores populares e da esquerda que, sem ter suas demandas de
transformação social cumpridas, sobrecarregaram o governo Goulart com
demandas insustentáveis para a sociedade oligárquica da época”, analisa a
pesquisadora. O janismo, como nota Vera Chaia, pode ter desaparecido
com Jânio, mas sua influência ainda coloca a questão que encerra a
pesquisa de Álvaro Moisés sobre o Brasil recente: “Esse processo de
progressiva deslegitimação das instituições básicas da democracia
representativa poderá ser usado, a médio ou longo prazos, para alimentar
alternativas antidemocráticas?”.
Artigo científico
MARTINS, C.E. Brasil-Estados Unidos: dos anos 60 aos 70. Cadernos Cebrap. n. 9.
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