AGENDA CULTURAL

8.6.12

Contra a censura: "Avanços têm que permanecer"



Para registro mais amplo, publico meu artigo no último número do jornal O Escritor, da UBE. Mas recomendando a leitura do jornal todo – a página dupla de fotos de novos sócios com aparência feliz está ótima, entre outros conteúdos. E observando que, desde quando entreguei o artigo (há um mês), houve novidades. Uma, positiva: censura no Facebook parece ter refluído, diante da ameaça de um escândalo e um protesto mais vigoroso. Outra, grotesca: a suspensão da circulação da biografia de Lampião, sustentando que o cangaceiro era gay, sob alegação de ofensa à sua reputação. Sobre isso, ainda publicarei as devidas ironias.
Há 50 anos, aproximadamente, foi liberada a circulação nos Estados Unidos de Henry Miller, D. H. Lawrence e James Joyce, até então barrados por obscenidade.
Há pouco mais de 23 anos, no final de 1988, foi aprovada nossa Constituição, pela qual “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença” (art. 5º), sendo “vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística” (art. 220).
50 anos, 23 anos: isso é muito ou pouco tempo? Uma enormidade, uma considerável extensão no plano da biografia e da memória individual. Uma fração, mínimo lapso, nada, para os que reincidem e persistem em praticar a censura. Tais recaídas já foram comentadas por mim neste O Escritor, a propósito da censura judicial, impedindo a circulação de biografias, em uma prática energicamente repudiada em nosso recente Congresso de Escritores.
Por isso, venho repetindo que censores podem estar quietos, mas não dormem; que sempre há alguém tentando fazer que a censura retorne pela porta dos fundos.
Dois episódios recentes, já examinados em meu blog, http://claudiowiller.wordpress.com , corroboram e justificam minha preocupação. Um deles, a ação movida contra acepções do vocábulo “cigano” em dicionários. Conforme amplamente noticiado, o Ministério Público Federal entrou com ação na Justiça Federal em Uberlândia (MG) para tirar de circulação o dicionário Houaiss: segundo seus autores, conteria expressões “pejorativas e preconceituosas”, praticaria racismo contra os ciganos e não atendeu às recomendações de alterar o texto, como fizeram outras duas editoras com seus dicionários.
O policiamento do vocabulário tem um nome: expurgo. A grotesca censura a dicionários recebeu críticas de todo o lado. Ainda assim, não posso deixar de lamentar que as outras duas editoras, cujos dicionários também foram objeto desse patrulhamento, tivessem cedido e retirado as acepções tidas como pejorativas. Covardes. Cúmplices da censura. Deveriam ter resistido. Assim, em alguma instância, um juiz ou tribunal bafejado pelo bom senso poria cobro ao absurdo, estabelecendo jurisprudência e inibindo a repetição dessa loucura.
Outro sintoma de recaída vem acontecendo na rede social, o Facebook, que emprega “moderadores de conteúdo” para retirar imagens e textos supostamente ofensivos. Como se não bastasse, ainda são enviadas advertências de violação dos “padrões da comunidade” do Facebook, além de bloqueios temporários das páginas de infratores.
Tais padrões supostamente comunitários da rede social não podem, é evidente, sobrepor-se à legislação brasileira. Impedir disseminação da violência, preconceito, ódio, é perfeitamente admissível. Mas, confirmando a regra de que toda censura é obtusa, houve interferência em páginas de usuários resultando na supressão de reproduções de obras dos surrealistas Paul Delvaux e Salvador Dali, entre outras: todas livremente expostas em museus e acessíveis através do Google e outras ferramentas de busca.
Por enquanto, usuários decidiram protestar, multiplicando a exibição e circulação de tais imagens, assim desorientando censores, inviabilizando seu trabalho. Outras medidas, inclusive judiciais, além de protestos públicos, serão tomadas. Nem que seja para mostrar que em nossa cultura o tempo é progressivo e irreversível; que avanços não retroagem – desde que estejamos dispostos a defendê-los.

Houaiss no banco dos réus 


Guydo de Almeida 
Senhora Dad Squarisi 

Sou seu leitor assíduo e entusiasta de sua coluna e de seus livros pela qualidade de seu trabalho, pela excelência de seu texto, por sua clarividência.  Há anos coleciono recortes de sua coluna que arquivo em pastas para posterior consulta e deleite intelectual. Consulto sempre seus livros, com prazer sempre renovado. 

Entretanto, não consigo concordar com a história do verbete "cigano" constante do Dicionário Houaiss. Não considero que o dicionarista "bobeou".  Ele registrou as acepções do vocábulo e teria bobeado e sido omisso se não o fizesse. Não é essa, por acaso, a função do dicionarista? 
A função precípua do dicionário não é registrar as várias acepções de cada vocábulo de uma língua? Se ele não registrasse a acepção em questão, teria sido omisso, preconceituoso e teria falhado no seu objetivo. 

Equivocaram nos seus julgamentos quem pediu, quem concedeu, quem aprovou e quem acatou esse verdadeiro patrulhamento linguístico por que atualmente passamos, o que nada mais é do que uma confirmação do Febeapá (Festival de besteira que assola o país), criação do inesquecível Stanislau Ponte Preta.  

Patrulhamento equivocado, puro e simples besteirol.  E até o MPF caiu nessa armadilha. E a senhora informa que "a edição atualizada cortou o trecho ofensivo".  Um dicionário (mormente o Houaiss) não emite juízos de valor, portanto, ele não ofende, nem elogia. Ele apenas registra. E tem obrigação de fazê-lo, ou correr o risco de ser incompleto.  

Ainda bem que o dicionarista Houaiss não está mais entre nós para sofrer por seu trabalho ultrajado pela incompreensão generalizada, pelo modismo inconsequente.  Mas sua laboriosa equipe, ela sim, deve estar muito ofendida com tanto desrespeito e impropriedade.   

Se a moda pega, quantos não serão os próximos inúmeros verbetes e acepcões a serem suprimiddos dos dicionários, tornando-os obras aleijadas, sem qualquer utilidade? No estágio em que se encontram as ciências da linguagem, isso seria procedimento inconcebível. 

A linguistica atual não pode aceitar atitude tão retrógrada, tão anticientífica.  Francamente, da senhora era de se esperar atitude diferente: uma defesa incondicional da posição do dicionarista, de sua equipe de trabalho e da obra, que é o que interessa, em última análise. Um dicionário é, por definição, o registro dos usos linguísticos dos usuários de uma língua, sejam esses usos expressos em recursos carregados ou não de ideologias, preconceitos, impropriedades.  

O dicionário não julga, não avalia, não aprova nem reprova; ele registra.  E esse registro deve ser exaustivo. Só assim a obra será completa, ou tenderá a atingir a completude.  De qualquer forma, foi lamentável tudo o que ocorreu, por não se levar em conta o que seja um dicionário e qual a sua função.
  

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