Excelente crônica de Bernardo Carvalho. O texto pode ser considerado um conto, em que o personagem escritor (primeira pessoa) sai à procura de si mesmo em suas obras. O uso da figura do homônimo foi um excelente recurso.  Publicado na Folha de São Paulo, domingo, 15 de julho, na ILUSTRÍSSIMA.
BERNARDO CARVALHO - biografia
Descobri, no meio da vida, que tinha um homônimo. Não pode haver pior 
descoberta no meio da vida, quando trocar de nome acarreta problemas que
 seriam insignificantes no começo da vida. Quando eu fazia leituras 
públicas, eram os livros do homônimo que estavam expostos nas vitrines 
das livrarias e que os leitores me pediam para autografar. Passei a dar 
declarações vergonhosas para ver se o homônimo, envergonhado, trocava de
 nome. Adotei um comportamento dos mais estranhos com a mesma 
finalidade. Passei a escrever livros horríveis, para denegrir sua 
imagem. Mas nada demovia o homônimo, que continuava a escrever seus 
livros horríveis, com o meu nome. Me tornei um escritor ridículo. Passei
 a me vestir de palhaço. E só quando, por meio de uma fotografia no 
jornal, entendi que o homônimo fazia o mesmo, foi que decidi tomar um 
avião para convencê-lo pessoalmente a deixar meu nome em paz.
Não havia voos diretos para onde vivia o homônimo. Em cada aeroporto 
onde fiz escala, aproveitei para comprar uma lembrancinha para ele. Os 
aeroportos se tornaram shopping centers. É normal. É preciso dar uma 
utilidade às horas de espera cada vez mais longas entre as chegadas e as
 partidas cada vez mais numerosas. Os presentes não podiam fazer mal. É 
uma tradição desde que os brancos estabeleceram contato com os 
indígenas. Ao contrário dos brancos, entretanto, eu não escondia 
segundas intenções; os presentes só mostravam a minha boa vontade. Eu 
mesmo seria capaz de usar aquelas roupas.
Nas livrarias dos aeroportos, eu via os livros do homônimo e tentava me 
controlar para não perguntar por que não vendiam também os meus. Ter um 
homônimo já é humilhação suficiente. Terminei comprando um livro dele 
para ler no avião. Era tão mais ridículo que os meus já tão ridículos. 
Eu ria alto, de vergonha, enquanto os passageiros me lançavam olhares de
 reprovação. Eu virava as páginas com desenvoltura e ria da desenvoltura
 dele. Como é que tinha coragem? Como é que uma pessoa pode escrever uma
 coisa dessas? E ficava tão mais admirado por eu nunca ter pensado, 
mesmo quando quis ser mais ridículo, em escrever nada que lhe chegasse 
aos pés. Afinal, a aeromoça veio me pedir para rir mais baixo. Eu estava
 atrapalhando a leitura dos outros passageiros. Ninguém ria a bordo. 
Preferi não perguntar o que estavam lendo.
Qual não foi a minha surpresa quando finalmente cheguei ao meu destino 
e, ao desembarcar do avião, carregado de pacotes e sacolas com os 
presentes para o homônimo, avistei-o do outro lado da parede de vidro 
que separava a sala de embarque do corredor de desembarque por onde eu 
avançava com o resto dos passageiros do meu voo. O homônimo estava 
sentado, esperando para tomar o mesmo avião de volta para o lugar de 
onde eu vinha. Não adiantava gritar. Bati no vidro, agitei os braços, 
tentando chamar a atenção dele. Mas ele não me via. Estava demasiado 
absorto, lendo um livro que eu havia escrito. Ria e punha a mão na boca.
 Balançava a cabeça, incrédulo. Imaginei que, se estava sem pacotes e 
sem sacolas, era porque tinha deixado para comprar os meus presentes nas
 várias escalas que ainda teria que fazer para chegar a mim. 
 
 
 
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