AGENDA CULTURAL

25.10.12

O PT não é uma quadrilha


Quadro do Instituto Millenium, o sociólogo diz que a legenda é a “representação partidária de uma parcela significativa dos cidadãos brasileiros”. Ele reconhece ainda que a propaganda de José Serra se deixou contaminar pelo “desespero’’ e que a oposição brasileira se encontra em “estado falimentar”.

Demetrio Magnoli*

Fernando Haddad está cercado por José Dirceu e Paulo Maluf. Sobre Dirceu, aparece a palavra “condenado”; sobre Maluf, “procurado”. Contaminada pelo desespero, a propaganda eleitoral de José Serra não viola a verdade factual, mas envereda por uma perigosa narrativa política. O candidato tucano está dizendo que eleger o petista equivale a colocar uma quadrilha no comando da prefeitura paulistana. A substituição da divergência política pela acusação criminal evidencia o estado falimentar da oposição no país e, mais importante, inocula veneno no sistema circulatório de nossa democracia.

Demóstenes Torres foi expulso do DEM antes de qualquer condenação, quando patenteou-se que ele operava como despachante de luxo da quadrilha de Carlinhos Cachoeira. José Dirceu foi aclamado como herói e mártir pela direção do PT depois da decisão da corte suprema de uma democracia de condená-lo por corrupção ativa e formação de quadrilha. O mensalão é um tema legítimo de campanha eleitoral e nada há de errado na exposição dos vínculos entre Haddad e Dirceu. Contudo, a linguagem da política não deveria se confundir com a linguagem da polícia.

Dirceu permanece na alta direção petista, pois é um dos artífices de uma concepção da política que rejeita a separação entre o Estado e o partido. No mensalão, a imbricação Estado/partido assumiu o formato de um conjunto de crimes tipificados. Entretanto, tal imbricação manifesta-se sob as formas mais diversas desde que Lula subiu a rampa do Palácio do Planalto. 

O código genético do mensalão está impresso no movimento de partidarização da administração pública, das empresas estatais, dos fundos de pensão, dos sindicatos, das políticas sociais e da política externa conduzido ao longo de uma década de lulismo triunfante. Na linguagem da política, Dirceu figuraria como símbolo da visão de mundo do lulo-petismo. Mas a campanha de Serra não é capaz de escapar ao círculo de ferro da linguagem policial.

A Interpol define Paulo Maluf como um foragido da Justiça. Lula e Haddad não se limitaram a firmar um pacto eleitoral com o partido de Maluf, mas peregrinaram até a mansão do fugitivo para desempenhar o papel abjeto de cortejá-lo como liderança política. Faz sentido divulgar, no horário de campanha, as imagens da macabra confraternização. Contudo, uma vez mais, seria indispensável traduzir o evento na linguagem da política, que não é a da Interpol.

Maluf é um caso extremo, mas não um ponto fora da curva. Lula e o PT insuflaram uma segunda vida aos cadáveres políticos de Fernando Collor, Jader Barbalho, José Sarney, Renan Calheiros e tantos outros. As alianças recendem a oportunismo, um vício menor, mas a extensão da prática exige uma explicação de fundo. O paradoxo aparente do encontro entre “esquerda” e “direita” é fruto de um interesse compartilhado: a continuidade da tradição patrimonial de apropriação da “coisa pública” pela elite política. As “estranhas alianças” lulistas funcionam como ferramentas para a repartição do imponente castelo de cargos públicos na administração direta e nas empresas estatais. Até hoje o Brasil não concluiu o processo de criação de uma burocracia pública profissional. Na linguagem da política, a confraternização de Lula e Haddad com Maluf ajudaria a esclarecer os motivos desse fracasso. Mas a propaganda eleitoral de Serra preferiu operar em outro registro.

A campanha do tucano oscila entre os registros administrativo, moral e policial, sem nunca sincronizar o registro político. De certo modo, ela é um reflexo fiel da falência geral da oposição, que jamais conseguiu elaborar uma crítica sistemática ao lulo-petismo. 

Entretanto, nas circunstâncias produzidas pelo julgamento do mensalão, a inclinação oposicionista a apelar para a linguagem policial tem efeitos nefastos de largas implicações. Na democracia, não se acusa um dos principais partidos políticos do país de ser uma quadrilha.

O PT não é igual à sua direção eventual, nem é uma emanação da vontade de Dirceu ou mesmo de Lula. O PT não se confunde com o que dizem seus líderes ou parlamentares em determinada conjuntura, nem mesmo com as resoluções aprovadas nesse ou naquele encontro partidário. Embora tudo isso tenha relevância, o PT é algo maior: uma história e uma representação. A trajetória petista de mais de três décadas inscreve-se no percurso da sociedade brasileira de superação da ditadura militar e de construção de um sistema político democrático. O PT é a representação partidária de uma parcela significativa dos cidadãos brasileiros. A crítica ao partido e às suas concepções políticas não é apenas legítima, mas indispensável. Coisa muito diferente é tentar marcá-lo a fogo como uma coleção de marginais.

O jogo do pluralismo depende do respeito à sua regra de ouro: a presunção de legitimidade de todos os atores envolvidos. Nas democracias, eleições se concluem pelo clássico telefonema no qual o derrotado oferece congratulações ao vencedor.

Em 1999, após o terceiro insucesso eleitoral de Lula, o PT violou a regra do jogo, ao desfraldar a bandeira do “Fora FHC”. Serra ficou longe disso dois anos atrás, mas seu discurso de derrota continha a estranha insinuação de que a vitória de Dilma Rousseff representaria uma ameaça à democracia. 

Agora, na eleição paulistana, a propaganda do tucano sugere que um triunfo de Haddad equivaleria à transferência da prefeitura da cidade para uma quadrilha. Na hipótese de derrota, como será o seu telefonema de domingo à noite?

Marqueteiros designam ataques ao adversário eleitoral pela expressão “propaganda negativa”. O rótulo dos vendedores de sabonete abrange tudo, desde a crítica política fundamentada até as mais sórdidas agressões pessoais. O problema da campanha de Serra não está no uso da “propaganda negativa”, mas na violação da regra do jogo. Não é assim que se faz oposição.

Demétrio Magnoli é sociólogo.

2 comentários:

ESTACÃO BRASIL (UP GRADE) disse...

Gostei bastante da análise, muito lúcida e despojada de qualquer preconceito ou sectarismo. A única questão que ressalto é que pela própria "decomposição degenerativa" do processo democrático representativo, que vive sua plena decadência, JÁ NÃO EXISTE REGRA DO JOGO. Todo e qualquer princípio ético que algum dia tenha norteado a conduta na Política, é rejeitado, (seja um político da situação ou oposição , com raríssimas exceções)e o modus operandi é utilizar o que são "FINS" como "MEIOS" e vice versa. Institucionalizou-se a perversidade
como justificativa.
Na minha humilde compreensão, isto se deve ao afastamento colossal que a prática política e os partidos, tidos como de esquerda tiveram, nos últimos 20 anos, daqueles, que teoricamente, deveriam produzir CONHECIMENTO, dentro do AMBIENTE ACADÊMICO. Ou será que estes também se perverteram?

Nélsinês disse...

De fato, o pt não é todo uma quadrilha, conheço gente nesse partido que eu considero muito bem. Contudo, me pergunto, o que estes ainda fazem aí se o cerne do partido está mais podre que qualquer outro, ou seja, seus maiorais se corromperam e esqueceram de forma tão vil toda ética que o partido buscava para o país quando de sua criação e crescimento? E o psdb, na ideia de não fazer a mesma oposição raivosa e "permitir ao pt governar, fechou os olhos para muitos desses podres, não representando mais o que se espera de uma oposição firme e saudável. Por isso entrou em decadência também. Agora está pagando o preço. O Brasil só se livrará desse modelo infeliz de política após uma profunda reforma, que era esperada do pt. Mas, este, tão logo beliscou o poder, lambuzou-se e esqueceu seus princípios. Assim, esperar que esta reforma seja feita pelos podres que aí estão e sempre reeleitos pelo povo que "não liga", é esperar um milagre. Mas, Deus não opera milagres para quem nada faz para merecê-lo.