Reportagem da Revista Carta Capital - n.º 719 - 17/10/2012
ERA UM
FAROESTE o que acontecia no oeste paulista daquele tempo. Tiroteios, índios, a
estrada de ferro chegando a todo vapor. Quem ficasse no meio teria de enfrentar
tudo isso.” Magda Siqueira Triano, 63 anos, ajeita-se na cadeira. A pausa é uma
deferência às lembranças cristalizadas nos três amarfanhados pedaços de papel
que cobrem a mesa de jantar de sua casa em Araras, interior de São Paulo. Uma
folha de caderno escrita em caligrafia vacilante jaz ao lado de uma página
puída do jornal Notícias de Hoje de um domingo de abril de 1954 e de um caderno
do diário O Estado de S. Paulo de 2006, com o título: “O suíço que desbravou a
Alta Paulista”. Os três recortes dialogam, desmentem-se, desafiam-se ao
percorrer mais de oito décadas no elástico tempo das versões. Mas garantem, diz
a aposentada: “Essa não foi uma história inventada”.
Magda Siqueira Triano |
No jornal comunista, onde posseiros posam com crânios aos pés, o suíço era "sanguinário latifundiário". Para o Estadão atual, é é um "desbravador" |
o sobrenome se curva em cada recorte a uma atribuição
diferente. Na reportagem do Estado, surge a imagem oficial do “pioneiro” que
vendera suas tecelagens na Suíça para vir ao Brasil enfrentar o sertão, a mesma
que brota dos sites das fazendas hoje transformadas em hotéis rurais a cargo
dos descendentes de Wirth, assim como no busto erguido na praça de Osvaldo
Cruz, cidade “fundada” por ele, no nome de escolas e avenidas e até em um
trecho do Diário Oficial do Estado de São Paulo, de 1977.O documento, que
registra os trabalhos da Assembleia Legislativa e parabeniza a cidade pelo seu
aniversário, diz: “O fundador da comuna foi o suíço Max Wirth, que, com seu
espírito arrojado, pertinaz e empreendedor, deu início à povoação”.
Estadão, edição em que Max Wirth é chamado de desbravador |
Um dos “primeiros pioneiros da Noroeste”, o Wirth dos
memorialistas da região enfrentou onça e acampou no mato para abrir suas
terras, versão predominante na historiografia do estado de São Paulo: uma
narrativa épica em que bandeirantes e estrangeiros desbravaram a selvageria
sertaneja. Em um Recanto do Sertão Paulista, publicado em 1923 pelo grileiro
Amador Cobra, mostra como essa história encobriu crimes hediondos. “Esses
feitos constituem verdadeiros lances de heroísmo, embora digam outros que, de
mistura, aparecem factos que não merecem o mesmo qualificativo. Qual
nacionalidade, porem, que não apresenta, na história de sua formação e
evolução, paginas tristes entre outras de glória?”
Casal Max Wirth |
É o que afirmamos outros dois recortes. Magda toma com
cuidado a folha de caderno manchada pelo tempo, tentativa de iniciar o que
seria a biografia de um homem. “l° Capítulo. Em 1923,vim residir em Araçatuba”,
começa. A gramática é tão tortuosa como a história ocorrida em 15de março de
1929.”Meus pais naquela época tinha (sic)adquirido 1.300 alqueire paulista na
fazenda Jangada, 33 kilômetros de Araçatuba que infelizmente foi depois de ter
deter derrubados muitos mattos, e já formando uma começo de um patrimônio.
Muitas casas e a sede da fazenda. Foi despejados a balas de 30 jagunços (…)
pelo Maik Vites (sic)Pois ouve muitas mortes, que foi devorado pelos porcos um
desses que morreram. Jose Siqueira felizmente escapou da chacina no tiroteio.”
Não houve segundo capítulo. O que restou das lembranças foi
aquele arremedo biográfico e um recorte do jornal comunista Notícias de Hoje,
que Siqueira guardou por 47 anos, parte deles em um cofre do qual só ele sabia
a senha. Ali estava sua história. “Mais de 200 mortos na chacina do
patrimônio”, reza o título da reportagem. ”Aluta entre os latifundiários pela
posse da Jangada tornava-se cada vez mais acesa por volta de 1929. Enquanto uma
demanda corria morosa pelos tramites legais a carabina fazia valer sua força,
arrebatando terras e mais terras.” Wirth teria ameaçado os habitantes, mas
“estes não quiseram largar suas posses e por isto os capangas fuzilaram o
patrimônio.” Dos quatro sobreviventes, um era Siqueira.
Nos grandes jornais, o ocorrido inexistiu. Nos dias seguintes,
nenhuma linha saiu no mesmo Estado que, décadas depois, retrataria Wirth como
“desbravador”. Na Folha da Manhã do dia 16,a manchete era a “senhorita
SãoPaulo”,eleita para representar “a graça e a formosura da mulher paulista” no
concurso de misses. Só nos periódicos comunistas o assunto veio à tona. Em
1950,o Voz Operária relata um encontro de arrendatários do “tatuíra suíço Max
Wirth”, prestes a serem expulsos pelo aumento nos contratos. Wirth, diz a
publicação, teria grilado as terras onde viviam posseiros. “E tudo faz supor
que muitos desses antigos ocupantes da terra tenham sido assassinados pelos
capangas do ‘tatuíra”‘, já que “foram encontrados na fazenda, numa vala comum,
uma grande quantidade de esqueletos humanos que chegam para encher uma carroça”.
Esse era seu modus operandi, explica a edição de 7 de abril de 1954, que
relata: os capangas de Wirth plantavam capim nas terras dos camponeses. “O
latifundiário chegou ao ponto de requisitar tôda a fôrça policial de
Guararapes, transformando a sede da fazenda em um verdadeiro arsenal. Um
sargento, um cabo e onze praças armados de fuzis e metralhadoras foram garantir
o plantio do capim”. Os camponeses tiveram lares invadidos, “foram presos e
sofreram espancamentos”.
Max Wirth |
No Notícias de Hoje do mesmo ano, uma foto traz camponeses
com crânios sob os pés: “Os verdadeiros donos da terra, chacinados por Max
Wirth”. O suíço é retratado como um protocapitalista em um faroeste desumano.
“Com massacres terríveis, crimes hediondos, o latifundiário Max Wirth conquistou
imensos domínios”, diz o texto. “O povo não podia se o por às suas hordas
armadas protegidas pela cumplicidade do governo.” A situação descrita seria
semelhante àquela dos sem-terra paulistas décadas depois. “Morto o sanguinário
latifundiário os camponeses talvez pensassem que havia terminado seu calvário.
Mas foi tudo puro engano, esperança vã. Hoje, em lugar do temível cangaceiro,
que mandava suas hordas matar indiscriminadamente mulheres, homens, velhos e
crianças, domina a Jangada o filho, de nome Pedro Wirth, que herdou do pai a
cobiça, a ambição, o ódio aos camponeses e aos homens que trabalham”, Magda
aquiesce. “São Paulo crê que não teve coronelismo, grilagem, coisas que só
haveria em outros estados. Mas tem sim, tem essa história. Foi em São Paulo que
ela aconteceu.”
A História começaa desvendar essa realidade. “Isso aconteceu
muitas vezes. Todo o oeste paulista era extremamente violento, um faroeste como
nos filmes americanos”, afirma o historiador Carlos de Almeida BaceIlar,
diretor do Arquivo Público do Estado de São Paulo. BaceIlar estudou a fundo a
questão fundiária no oeste, especialmente na região de Ribeirão Preto. ”Ali as
famílias Silva Prado, Junqueira, entre outras, avançaram como um rolo
compressor sobre os posseiros. Analisando a formação dessas propriedades, vê-se
que foram formadas por 100, 150 glebas. Mas não há registro de como foram
adquiridas, nem de quem.” A tendência, explica, era os posseiros chegarem antes
e trabalharem a terra devoluta. Plantavam, erguiam patrimônio. Depois vinham os
grandes proprietários, interessados em comprar as glebas para constituir
propriedades. “Se alguém não quisesse sair, os poderosos contratavam jagunços e
mandavam matar. A polícia nem chegava a saber”, diz BaceIlar. Sem registros, a
questão morria Sobrevivia apenas na memória das famílias. Exemplos de
assassinos contratados para desencorajar a resistência ao domínio latifundiário
não faltam. Como Dioguinho, o “matador dos punhos de renda”, que assassinou
mais de 50 pessoas. Era Dioguinho surgir e a mensagem estava dada.
“O pessoal falava de luta entre posseiros e o pessoal do
Wirth, especialmente na gleba de Ubá”, diz o historiador Ulysses de Salis.Seu
pai foi um entre as dezenas de imigrantes suíços trazidas por Wirth para
trabalhar em suas propriedades nos anos 1950,o que motivou o filho a estudar as
representações do “pioneiro” em sua dissertação e o fez deparar-se com relatos
de brigas por terras resolvidas à bala. ”Antes de 1930,não há documentos, então
não se sabe como ele adquiriu tanta terra. Teve terra comprada, talvez terra
grilada, teve conflitos armados e acordos. Teve de tudo na briga por terras
naquele tempo. Para se ter uma ideia, uma gleba grande dele tinha 70 mil
alqueires. Ia de Guararapes a Oswaldo Cruz. AJangada estava no meio.”
Confrontada comindagações sobre como Max Wirth conquistou
suas (muitas) terras, a família do suíço preferiu não se manifestar. Rêgula
Baumgartner, neta de Wirth e dona de fazendas na região, disse que só
responderia por escrito, dada a “delicadeza” do assunto, mas não retornou o
pedido de entrevista. ”A família é grande. Se eu disser algo de errado sobre
meu avô, eles caem todos em cima de mim. “
A crer no Diário Oficial do Estado de São Paulo, de 9 de
agosto de 1927,a região foi foco de uma disputa acalorada. Wirth “protestava
haver do capitalista Luiz Alves Thomaz, perdas, danos e interesses no caso de
levar a efeito, por si e seus sucessores, ou cessionários, qualquer execução
contra a parte das terras da Fazenda Jangada”. Um capitalista dera como garantia
a outro terras que pertenceriam a Wirth, que argumentava ter exercido nelas
“posse mansa e pacifica por muito mais de trinta anos.” Como as terras acabaram
nas mãos de posseiros, viraram alvo do interesse de outros latifundiários. Em
25 de abril de 1945, Wirth, Angelo Zancaner e os Lunardelli ainda protestavam
na Justiça pela “partilha” da Jangada, com argumentos e contra-argumentos
jurídicos, embate que se reproduz ao longo dos anos e sobre outras terras do
oeste, narrados em centenas de páginas da imprensa oficial e processos
judiciais e resguardados na memória das famílias que assistiram à batalha de
longe, após serem expulsas à bala. O que a história faz crer é que a batalha de
advogados nas comarcas do interior não era o único expediente dos proprietários
para engordar o capital.
“A verdade é que eles ficaram sem nada”, diz o advogado
Cláudio Stéfano, defensor de uma família de Araçatuba que afirma ser herdeira
de 15,5 mil alqueires e há anos luta para ter a propriedade das terras. Contam
os herdeiros que, em 1884, Manoel Elias Leme veio de Minas Gerais e comprou uma
fazenda na região, hoje parte das cidades de Araçatuba, Guararapes e Val
paraíso. Dez anos depois, Leme, sua família e agregados teriam sido expulsos
por jagunços amando de um certo Augusto Fonseca, que então teria grilado as
terras usando procurações falsas. “Faz muito tempo e não há documentos de
nada”, diz Stéfano, que desistiu do caso. “No fim, uma ação esbarraria em
usucapião. E a família foi ameaçada, ficou com medo.”
São relatos quetrazem à tona uma história de grilagens,
especulação e morte que grassou pelo interior de São Paulo no século passado e
ainda hoje ecoa na relação entre latifúndios e sem-terra. “O fazendeiro usava o
trabalho do posseiro para abrir fronteiras. Como era preciso comprovar
residência para requerer a posse, ele usava o posseiro e depois o expulsava
violentamente”, diz o geógrafo Carlos Feliciano, da Unesp. “O MST questionou
tal modelo de grilagem e legalização estatal. Mas a tensão é a mesma daquele
tempo.”
Um tempo que ainda hoje povoa a memória de Magda. “Foi um
projeto de vida do meu avô que foi por água abaixo.” Depois da fuga, conta a
neta, Siqueira passou a vender bilhetes de loteria e jogo do bicho. Foi preso.
Ficou pobre. Ao morrer, em 1976, deixou ao mais próximo dos filhos o recorte,
herança de uma vida sem posses. Era o pai de Magda, que morreu neste ano. O
recorte coube a ela, que decidiu trazer a história à tona após ficar doente.
Ela sabe que nenhum dos outros familiares quer tocar no assunto, que tende a
morrer com ela.
“O passado é uma grande escola para entender o presente”,
filosofa a bancária aposentada, formada ainda jovem em Filosofia. “Existe outra
história do Brasil, subjacente, escondida até alguém contar.” Magda tomou a
tarefa para si. E o faz em detalhes. Um dia, lembra, tinha lá seus 9 anos, foi
mandada ao colégio de freiras da região. Qual não foi sua surpresa ao ouvir,
entre os nomes das alunas, o sobrenome Wirth. “Era a neta dele.” Magda correu
ao avô, que não hesitou em contar outra vez sua história. “Ele me disse: foi o
avô dela que tomou as terras de vocês.”
14 comentários:
Com certeza absoluta essa história é real.. quem tem familiares e residiu nessas fazendas sabem que tudo foi assim.
Parabéns pela matéria, muito informativa. Infelizmente é a história dos "vencedores". Fazer o que?
Ouvi a uns 20/25 anos atrás, no STRP - Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Pacaembu, algo referenciado a essa nota.É Lamentável.
Em 1928, meu avô, junto com os irmãos e o pai vieram â cavalo de Bálsamo na região de Rio Preto comprar sítios em Guararapes.Todos adqueriram terras onde hoje é a via de acesso e no nascente. Me dizia meu avó que existiram capangas em um péríodo naquela fazenda jangada, nunca mencionou atrocidades da forma que publicaste.
Meus pais moraram na Fazenda Jangada dos anos 50 aos anos 80, Ja ouvi diversas vezes histórias de Capangas, etc.. Mas tem 2 citadas ai na matéria, que me arrepiou, sem tirar e nem por uma vírgula, do jeito que meu Pai contou, a primeira, dos porcos comendo gente, ali no Patrimônio (entre a Faz. Rio Preto e a Faz. Três Irmãos), e a segunda, a Policia de Guararapes a mando do Suiço, indo aterrorizar familias que eram "contra" o Suiço. FATOS PURAMENTE REAIS, infelizmente.
Parabéns pela matéria, há uma historia também que a viúva wirth tinha embalsamado o corpo do falecido marido e dormido com ele durante um ano dizem.
sr comsolaro queríamos entrar em contato para que nossa historia fosse analisada e talvez contada somos descendente direto de Eusébio lemes de Souza filho de Manoel Elias lemes que foi contada no final da historia de Magda Siqueira triano.meu tel 99110 2879 marcos lima thimblack@hormail.com email.
Nasci na Jangada em 1964 e morei lá até 1977 daí passei a morar em Guararapes até 1987, meu pai trabalhou de carpinteiro para os suíços, nos anos 50 60 e 70 ficou cego em umas das fazendas deles (Faz. Bem-te-vi) era um português cheio de historias reais e comentava tudo o que isso escrito aí.
sr comsolaro queríamos entrar em contato para que nossa historia fosse analisada entre em contato com magda siqueira ou arrumem um reporter interressado em nossa historia pois somos descendente de euzebio lemes de souza filho de manoele elis lemes verdadeiro dono da fazenda baguaçu historia jamais contada mais com processos tramitando no forum om mais de 23 volumes ...obr.0128 991102879 33042879.
SR consa queríamos entrar em contato para que nossa historia fosse analisada e talveiz contada pois nunca podemos contala somos pobres ate hoje não conseguimos recuperar uma herança que tramita no forum de ARAÇATUBA-SP a mais de 23 anos nossa historia é verdadeira pois somos descendente de Euzebio lemes de souza filho de Manoel elias lemes verdadeiro dono da fazenda baguaçu historia jamais contada . Espero sua resposta muito grato sei que SR é uma pessoa muito onesta que trabalha Sério neste Pais pois não aguentamos mais sermos enganados por advogados que são subornados por pessoas que estão encima das terras usufruindo daquilo que é nosso por direito.olha obrigado porenquantomeu contato é 018 991102879 33042879
Não conhecia essa história mas se não esbarrou esteve muito perto de meus antecedentes. Meus avós Julia Espósito e Pepino Bechilia (José Biciglia ou Giuseppe Bixiglia)viviam nessa Fazenda Jangada nessa época (tinham terras lá). Vários tios nasceram aí inclusive meu pai José Bechilia Filho que nasceu em 10/10/1929. Se alguém conheceu ou souber mais sobre esse lugar eu adoraria que me contatasse. email: laura.bechilia@terra.com.br
EU NASCI AI EM 1964, SAI DAI EM 1980, ME TRABALHA NA FAZENDA JANGADA NA ÉPOCA QUE LEMBRO ELE DIRIGIA ÔNIBUS DE ALUNO DA FAZENDA Bonsucesso PARA ESTUDAR NA FAZENDA JANGADA, ERA O SEU ARLINDO JOSÉ DA ROCHA, FOI UM ESPOCA MUITO BOA, MORÁVAMOS EM FRENTE A ROÇA QUE TINHA DE ALGODÃO E TAMBÉM TINHA UM CAMPO DE FUTEBOL , ERA UMA CASA DE MADEIRA , DEPOIS MUDAMOS PARA A COLÔNIA,
Os crânios da foto não têm relação com a matéria. Os crânios foram achados em um sítio entre os Municípios de Parapuã e Osvaldo Cruz, em 1946; inclusive,em um dos capítulos falarei sobre a ossada. Está provado que os crânios eram de índios. O jornal em questão era de tendência comunista e publicou a foto na tentativa de responsabilizar o senhor Max Wirth. Estou escrevendo um livro sobre Osvaldo Cruz e tenho esta foto. A consegui junto ao Museu Índia Vanuíre, na cidade de Tupã. Não estou defendendo o senhor Max Wirth. Sei que ele foi responsável por muitas mortes, mas, neste caso, ele não teve participação nenhuma.
gostaria sr.consolaro de me comunicar co o anonimo poi morei na faz jangada no mesmo periodo cicero.67 32553295
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