Por Cidinha Lacerda*
Sou filha de trabalhadores
nordestinos que migraram para o Estado de São Paulo em busca de novas
oportunidades. Os anos 60 representaram para nós um período de muitas dificuldades.
Mais ou menos um ano antes da instauração do Regime Militar houve suposta
desapropriação de uma grande fazenda na região de Auriflama. Meu pai e outros
colonos compraram lotes por preço simbólico, mas sem adquirir nenhum documento.
Logo em seguida veio o Golpe de 64 e, com ele, o fortalecimento dos grileiros e
latifundiários.
O fazendeiro retomou a posse daquelas
terras que meu pai e outros trabalhadores haviam adquirido. Aos primeiros que
cederam, o latifundiário disse que pagaria um valor, mas não pagou. Meu pai,
João Severiano, e seu amigo João Soares resistiram. O segundo João foi
assassinado friamente enquanto reforçava uma cerca. Isso abalou nossa família,
entretanto meu pai, pernambucano valente, armou-se e resistiu por mais dois
anos. Depois desse episódio, mudamos para Auriflama e, depois, para
Araçatuba.
Meu pai não tinha formação escolar e
a única maneira de sustentar a família foi trabalhando de guarda noturno,
atividade que exerceu até o final de sua vida. Meu irmão e eu ajudávamos no
sustento. Ele, trabalhando numa empresa de ônibus e eu como babá, depois
professora particular. Eu dava aulas de Matemática para complementar a renda. Tudo
isso criou em mim um grande senso de responsabilidade. É certo que em 64, com
11 anos de idade, eu não tinha ainda a consciência política para compreender o
que se estava passando no país, mas eu sabia que minha família havia sido
prejudicada e que nós estávamos numa situação muito difícil.
Mais tarde, tive a consciência do que
havia sido o Golpe e de como o Regime Militar provocou um grande retrocesso
para o país. Naquela época havia uma impressão equivocada em parte da sociedade
sobre a Ditadura. Muitos direitistas achavam que o regime combatia a corrupção,
mas ignoravam que ela estava arraigada no sistema militar e que era financiada
pelos Estados Unidos. Essas pessoas acreditavam no milagre financeiro que
trouxe algum desenvolvimento, como a construção de estradas. Mas para fazer
isso o governo tomou dinheiro emprestado e acabou expandindo a dívida externa e
fazendo o país ficar cada vez mais dependente do FMI.
Por isso, não há como defender esse
período tão sombrio da história brasileira, onde a mão de obra era explorada,
onde não havia liberdade de expressão, onde as formas de arte eram censuradas e
os talentos profissionais, perseguidos. Sem falar na tortura, no AI-5... Além
disso, havia também um descontentamento geral com a inflação, que subia e
descia diariamente, gerando especulação do mercado financeiro e muita insegurança.
Tudo isso provocou uma enorme insatisfação nas massas populares, que culminou
com o movimento pelas “Diretas Já”. Foi nesse bojo que nasceu o Partido dos
Trabalhadores, formado por lideranças sindicais, militantes de esquerda e
intelectuais.
Depois de um longo período de
repressão, o Brasil se reencontrou com a democracia em 1985. E a
redemocratização propiciou uma série de avanços, como o direito ao voto, o
direito de ir e vir, melhorias no mercado de trabalho, desenvolvimento
socioeconômico e fortalecimentos das instituições democráticas. Muitas dessas
conquistas se devem às políticas públicas instaladas pelo PT desde 2003, com o
ex-presidente Lula, e continuadas pela presidente Dilma Rousseff. Todos os
avanços dos últimos 29 anos jamais se dariam não fosse a Democracia. Por isso,
é importante lembrar o Golpe de 64 para evitarmos erro semelhante, para não
retrocedermos uma vez mais.
Eu, que vivi durante todo o período
militar e presenciei as conquistas democráticas, só posso dizer que a Ditadura
é o pior dos sistemas políticos, pelo obscurantismo das ações, pela cassação de
direitos, pela supressão da liberdade. Cada vez que lembro o que foi o Regime
Militar no Brasil, mais me certifico de que a Democracia é a melhor forma de
promover a justiça social, a paz e a valorização da pessoa humana. Também
acredito que o que somos hoje, como pessoas, é fruto do nosso passado, das
nossas escolhas, das lutas que travamos. Apesar das dificuldades e
circunstâncias históricas, creio que as injustiças que presenciei ainda na
infância e adolescência e o regime repressivo que se instalou no país me
ensinaram o valor da solidariedade, me fizeram ter uma visão mais humanista
sobre o mundo.
*Cidinha Lacerda é presidente do Conselho Municipal da Mulher de Araçatuba
e ex-secretária de Assistência Social do município.
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