Crônica
Esta noite eu tive um sonho/ Acordei muito assustado/ Sonhei que o mundo moderno/ No sertão tinha chegado/ O verde da minha roça/ eu vi tudo arrasado/ O ribeirão poluído/ Carreador tudo asfaltado (Trecho de Pesadelo de Caboclo, de Adauto Santos)
por Silvio Berengani publicado 20/04/2014
VICENTE MENDONÇA
O sítio acabou. Não tem mais porco no chiqueiro, pomar, nem galinha no terreiro. Cambuquira no meio das ruas do cafezal, então... Também quase não tem cafezal. Nem mais gente na roça. No horizonte se veem os johns deeres e masseys e suas possantes carpideiras, plantadeiras, envenenadeiras, colhedeiras e desempregadeiras. Bois e vacas na invernada são tão raros quantos lambaris nos riachos. No lugar da enxada, o randapi, aquele veneno de matar mato que a Monsanto inventou para não matar planta transgênica. O sítio da vó, da madrinha, do primo... ficou na memória. Quem viu e viveu, guarde as boas lembranças. Quem não viu e não viveu, dificilmente verá.
Se a gente fosse traçar o mapa da divisão agrícola do estado de São Paulo, teríamos poucas categorias. Lá, hoje estão desertos verdes onde nem passarinho voa. A monocultura impera que nem quiçaça em beira de lote abandonado. A partir do leste temos o litoral. Em terra, a pequena mancha, a escassa Mata Atlântica. A seguir, as manchas das regiões metropolitanas. Em torno delas, cinturões verdes, teimosia da agricultura familiar.
Dali em diante quase nenhum resquício do mundo rural dos caipiras, violeiros, jecas, boiadeiros, benzedeiros, doceiras e tantos outros personagens de nossa remota identidade. Só cana, eucalipto e laranja. Mais adiante, tanto faz se a oeste ou norte, cana, laranja e eucalipto. No centro, e muitos quilômetros à frente, laranja, cana e eucalípto. No final, já perto de Minas ou de Mato Grosso do Sul, cana, com sorte, algum eucalipto, às vezes milho ou soja, grãos que há muito deixaram de ser alimentos para se tornar moeda nas bolsas. Comódites.
Não é exagero. Quer mais? Ganha um copo de puro leite longa vida quem trouxer à redação desta revista uma paçoquinha, uma pamonha ou rapadura comprada num daqueles esquecidos ranchos à beira de estrada. Parada de viagem, hoje, é naqueles quase shopping centers de nomes americanos. Não tem um torresmo.
A nova música do interior joga a pá de cal na cova pr’onde desce uma parte das velhas identidades. Trabalho, natureza e paixões (perdidas ou conquistadas) forneciam matéria-prima e inspiração à música caipira. Hoje, são, em ordem: a banalização da mulher, a dor de corno e o enaltecimento da manguaça.
Parece até uma combinação entre indústria cultural, agronegócio e agências de modelos a despejar diariamente duplas e mais duplas de sertanejos universitários. Se esses universitários aprendem, pensam e agem como cantam nessas canções, pouco futuro resta ao Brasil. Temo até a formação nas pequenas cidades interioranas de uma geração de jovens a acreditar que o leite vem mesmo é da caixinha.
Não é o caso de defender uma volta aos velhos tempos. Talvez o esquecimento seja proposital, os tempos antigos eram duros, o trabalho era penoso, e renda das massas de boias-frias, meeiros e outros tipos de trabalhadores rurais era grão. É certo que os jovens queiram mais. Apenas a necessidade extremada da sobrevivência justifica os suplícios de uma roça.
Os descendentes dos antigos caipiras têm direito a uma vida digna e confortável como qualquer morador de centro urbano. O que choca é a velocidade e a forma violenta pela qual nos são tirados recursos tão preciosos, como os simbolismos de nossa existência, da memória dos antepassados, costumes, a cultura sábia, a natureza viva, essas coisas que davam à vida mais sentido e sabor.
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