Tharso José Ferreira*
Fui chamado para falar para a molecada de colégio, não fui e nem
agradeci, não vou ficar falando a estes pirralhos que não dão ouvidos a galo
velho. Ficar falando às traças numa sala cheia de ninfetinhas e mancebos
condenados ao celular não é comigo, ignoram que este futuro foi peneirado por
nós muito antes da mãe dela ter nascido, quanto mais os parido. Não sabem que
quem inventou o rock fomos nós no meio das proeminências atômicas, que depois
Elvis se apropriou e ensinou o mundo a dançar no requebro da pélvis, que a
história diz que perdeu o prestígio para uma bandinha pop, os Beatles, mais
populares que Jesus Cristo e ficou tão despeitado que encheu o globo de
barbitúricos e morreu inchado de solidão. Assim foi.
Essa imoralidade geracional que vocês pensam serem a ordem de suas vidas
protegidos por camisinha de látex fomos nós que demos início nos festivais de
rock, pisando em barro como um exército reunido desamassando o futuro,
guitarristas drogados e mulheres de voz de araponga segurando as bandeiras do
amor livre. Assim foi.
Enquanto hoje, tais mancebinhos passeiam pelas inocências
do Facebook num mundinho de faz de conta a gente do meu tempo que foi educada
na obediência dos pais, no jazz e samba de verdade, via espantada no preto e
branco das tevês chuviscadas o Vietnã ser coberto pelo agente laranja com um
colossal fundo musical dos Rolling Stones, bem no meio das totalidades da guerra
fria.
Odeio conversar com esta molecada de hoje que só estão aí porque Kennedy
e Kruschev não decidiram transformar o mundo em escombros com suas montanhas de
armas atômicas que tiraria a terra de órbita.
No meu tempo, a eletrônica não assustava porque ainda eram mistérios nos
porões da NASA, não dava as cara a qualquer mortal comum. Mas nascemos sob o
ruído supersônico de aviões a jato e em meio ao sangue das ditaduras que
empurrava o capitalismo das republiquetas de papelão enquanto a população aos
domingos de manhã cantava segurando na mão de Deus e a tarde podia ver na
tímida telinha do eletrodoméstico de consumo mais vendido no mundo as
peripécias do atleta do século fazendo gols sem parar nos gramados miseráveis
cheios de gente miserável deste meu Brasil de Jacson do Pandeiro, enquanto
alguns eram fuzilados nestes mesmos caminhos tentando romper os alambrados da
liberdade.
Ainda bem que a juventude é um mal que passa, pois crianças envelhecem e
estes soberbos do celular logo, logo, muito antes do que pensam estarão
cheirando mofo como eu. Estes momentos quase hilariantes que vivem agora com os
dedos espetados no celular lhes trarão angústias no futuro, gordura na cintura,
colesterol nas alturas e dor em cada ossinho, falta de foco na velhice e
sensação de que perderam a vida para Steve Jobs que viveu pouco, mas teve tempo
de escravizar o mundo com sua nova religião colorida com mensagens de tela, a
contracultura da contracultura. A minha esperança é que tudo um dia vai se
dissolver no ar, Jesus vindo ou não, com sua fala estranha de dar o outro lado
da cara para o mal dar bofetões.
Chio, mas na verdade eu não sei qual mundo presta mais, meus
tempestuosos dias no passado ou esta sonolência estúpida de hoje, onde não
temos mais o que falar um para o outro com os dedos espetados no celular num
mundo sem ideias, sacramento universal que certamente não terá volta como eu
que me lembro de a primeira vez que saí da cidade num trenzinho vagaroso como
um cavalo lerdo de aço barulhento, onde se serviam duas refeições até se chegar
ao destino, fritas com arroz, ervilhas e costelinhas de porco.
Dormíamos no
torpor dos movimentos enquanto meu pai conversava alegremente enquanto o trem
se afundava nos matos de meu Deus. Minha realidade, andar de trem na época, me
parecia fantástica, a maior aventura de um menino. Se digo isso para um garoto
de hoje, caçoa de mim. Hoje, olho para trás e posso entender esta gente de baixos
sentimentos dos dias de hoje tão cheio de exageros eletrônicos que nos separam
em silenciosas fortalezas. Guardo meus sentimentos sobre isso até em meus
sonhos, pois embora eu seja de outros tempos também estou nesta solidão de
seres, enterrado, obscuro neste arrebalde de gente de alto pedestal que
desprezam as pupilas dos olhos nas conversas e escondem suas bocas que negam beijos.
Nós tínhamos fraternidade na alimentação escassa, amor nos olhos das mulheres,
pois a gente não cravava os olhos numa tela, a gente cravava os olhos na vida,
na macarronada feliz de domingo, nos gol de campinho, num pé de laranja
carregado e quando os anos passavam a gente sofria por um amor doloroso, fazia
feira nas manhãs de domingo para se manterem vivas as casas, pois éramos a
própria vida quando havia distâncias entre máquinas e homem. Assim foi.
*Tharso José Ferreira é escritor, acadêmico da Academia Araçatubense de Letras.
6 comentários:
Saudade de um tempo que não vivi. Mas tento fazê-lo florescer, de alguma forma, seja nas histórias ouvidas ou lidas. E assim vamos, na contramão. Belo texto!
Ahhhh, o que dizer?
Só posso dizer que esse texto me fez parar, refletir e saborear cada palavra, cada intenção...
Espero que o bem que me fez, possa também fazer aos outros que o lerem.
Marcos Tinareli.
Me senti parado no tempo.
Perfeito.
Chegou a espetar-me de forma que....
...coloquei o celular na gaveta.
Tharso, meus parabéns, falou tudo que eu queria dizer, muito bom mesmo, onde será que espetarão os dedos daqui a alguns anos? fica a pergunta
Marianice Paupitz Nucera
Mais um belissimo texto desse mago das palavras...
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