AGENDA CULTURAL

11.10.15

Entrevista com Anna Muylaert - diretora do filme "Que horas ela volta"

As 51 anos, mãe de dois filhos, ela está satisfeita consigo mesma pelo sucesso arrebatador do filme que vem levando multidões aos cinemas e ainda foi escolhido para representar o Brasil na corrida por uma vaga ao Oscar em 2016

Anna Muylaert
Primeira diretora em 30 anos a representar o Brasil numa possível corrida ao Oscar de filme  estrangeiro, Anna Muylaert é só sorrisos. Desde que lançou Que Horas Ela Volta?, amigos lhe contam experiências baseadas no drama de Val (Regina Casé), uma fiel empregada doméstica que mora com os patrões e se vê colocada em situações delicadas pela filha inteligente e contestadora que se muda para a casa. “Uma amiga contou que ia ampliar o quarto da empregada depois de assistir ao filme. Cauã Reymond aumentou o salário da babá da filha!”, enumera a diretora.

Enquanto a academia americana não define os finalistas, o filme ganha prestígio: no Sundance Film Festival, levou o Prêmio Especial do Júri, pela atuação de Regina; no Festival de Berlim, o prêmio do público na Mostra Panorama. “Estou orgulhosa de mim”, diz Anna, mãe de José, de 20 anos, de sua relação com o músico André Abujamra, de 50, e Joaquim, de 15, com o pintor Márcio Antonon, de 60; e há um ano casada com o ator Luciano Bortoluzzi.

QUEM: Você quis cutucar a classe média com o filme?
ANNA MUYLAERT: Não quis chocar nem cutucar, não! Quis fazer um filme realista, que funcionasse como um espelho da sociedade brasileira. E mostrar o jogo de poder que há nos lares brasileiros, sem julgar os jogadores.

QUEM: Como surgiu a ideia desse roteiro?
AM: O chamado da maternidade foi muito forte para mim. Quando meu filho José nasceu, em 1995, senti que o trabalho da mãe não era só muito importante, como também sagrado. Mas ao mesmo tempo senti que esse era um trabalho desvalorizado na nossa cultura, já que no meu meio social todos entregavam o cuidado diário dos filhos para babás. E pagavam salários baixos para essas mulheres, que não raramente eram obrigadas a deixarem seus filhos com outras pessoas para poderem trabalhar. Senti que na figura da babá estavam contidos vários aspectos importantes da nossa cultura. Desde os mais positivos, como a afetividade do brasileiro; até os mais negativos, como a perpetuação do nosso abismo social por falta de educação adequada para todos.
Cena do filme
QUEM: Você foi alvo de comentários preconceituosos de dois cineastas durante um debate sobre Que Horas Ela Volta? em Recife. Claudio Assis e Lírio Ferreira chamaram Regina Casé de “gorda” e um maquiador da produção de “bichona”. Como lidou com isso?
AM: Quando a gente fala em machismo pensa em um sujeito malvado batendo na mulher. Mas não é isso. Machismo é um conjunto de regras com as quais a gente é educada há milênios, segundo as quais o homem fala e a mulher se cala, o homem age e a mulher observa, o homem é protagonista e a mulher, coadjuvante. A partir daquele debate, a gente começou a discutir isso. E abrir essa discussão é saudável tanto para os homens quanto para as mulheres. Começamos a observar melhor e entender por onde acontece.

QUEM: E por onde é?
AM: Vou dar um exemplo. Por que chamam a Dilma de “gorda” o tempo inteiro? “Gorda”, “feia”, “mal-vestida”... Ninguém chama o Lula de “gordo”. A Dilma é gorda, mas o Lula não é. Por quê? Se for para criticá-la, chamem a Dilma de péssima gestora, de má presidente, mas de gorda? Isso é atitude machista. E a consequência é que a grande parte das mulheres não aceita o próprio corpo. Temos que começar a perceber o que fazer para desligar o automatismo e parar de perpetuar atitudes negativas. É uma questão universal.
Cena do filme
QUEM: Como estrangeiros reagem ao filme, já que poucos têm essa cultura de empregada doméstica “quase da família”, ainda tão comum no Brasil?
AM: Eles reconhecem a relação de empregados considerados de “segunda classe”. Nos Estados Unidos eles não contam com empregados domésticos, mas têm os “chicanos”, que são as camareiras de hotel ou os motoristas de táxi. Idem na Europa, com imigrantes do Leste. Então, quando o filme termina, surge o debate: Por que temos relações verticais? Por que não podemos pensar em uma sociedade onde existam relações horizontais, de  colaboração em vez de superioridade?

QUEM: Como tem sido a aceitação do público?
AM: É uma avalanche de emoção! Tenho recebido mensagens nas redes sociais a cada dois minutos. Muitos me agradecem e relatam histórias pessoais. Uma amiga contou que ia ampliar o quarto da empregada depois de assistir ao filme. Cauã Reymond disse que aumentou o salário da babá da filha após ver Que Horas Ela Volta?. Uma patroa em Recife resolveu pagar para o filho da empregada um cursinho e a faculdade! Fico feliz por conseguir transformar vidas com o meu trabalho. Isso vale mais que o Oscar! Em seis meses me transformei em outra pessoa. Estou orgulhosa de mim, me sinto uma guerreira.

QUEM: Você é a primeira diretora em 30 anos a representar o Brasil numa possível corrida ao Oscar (a última foi Suzana Amaral por A Hora da Estrela, em 1986. Naquele ano, o Brasil não foi selecionado ao Oscar de filme estrangeiro). As mulheres estão conquistando seu merecido espaço no panorama do cinema nacional?
AM: A mulher está conquistando seu espaço, mas ainda temos muito a aprender em termos de autoestima e ocupação de espaço. Se o homem tem uma tendência cultural à própria egolatria, a mulher tem uma tendência cultural à humildade exacerbada. No entanto, hoje
estamos fortes porque, além de trabalhar fora, também seguramos a onda da casa e dos filhos. Quase sempre sozinhas! Mas o mundo continua sendo machista.

QUEM: Em um momento em que comédias despretensiosas dominam o mercado brasileiro, por que você quis ousar?
AM: Não fiz pensando no sucesso, mas, sim, em qualidade. E mesmo assim atingi um público que vai dos 8 aos 80 anos! Apesar de ser um drama, escolhi a atriz mais engraçada do país para fazer um filme muito sério – e o filme se tornou leve.
 
Cena do filme
QUEM: Você tem empregada?
AM: Sim, a Raimunda Borges. Ela trabalha na minha casa de segunda a sexta. Faz a comida, cuida da roupa, limpa tudo. Ela veio trabalhar comigo há quase 20 anos, ficou sete e quando teve um filho ela saiu. Há um ano me ligou se oferecendo para voltar. Adorei, porque ela é uma mineira maravilhosa, profissional nota 10.

QUEM: Sua relação com ela mudou depois de Que Horas Ela Volta?
AM: Ela acompanhou o processo de escrita do roteiro. No dia em que encontrei a grande solução para o filme, que foi tirar da filha da empregada o peso do clichê de pobre criatura, acordei excitada e ela foi a primeira pessoa que ouviu a nova história! E ficou emocionada.
Nesse dia eu disse: “Raimunda, vou fazer esse filme, discutir tudo isso e daqui para a frente você come na mesa com a gente”. Mas ela respondeu que não podia. Entendi, porque estamos dentro de uma cultura. Não é fácil infringir regras. Mas agora, com tanto debate, de vez em quando, ela come com a gente.

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