AGENDA CULTURAL

4.10.16

Sumiço da chave

Hélio Consolaro*

Quem não passou por isto? Sumiu a chave do carro. É só você, caro leitor, pô-la num lugar inusitado para viver a loucura de procurá-la.

Como já sou vivido, e dizem que o diabo é esperto porque é velho, já me armei contra tais infortúnios, assim, quando não acho tal coisa, traço mentalmente a trajetória de onde estive e quase sempre chego ao objeto perdido.

Foi assim que reencontrei minha carteira com dinheiro, cartões de crédito e documentos no terminal rodoviário da Barra Funda na cidade de São Paulo. Na hora do susto, dormi demais na cadeira de espera do ônibus, descobri a falta da carteira na bolsa.

A primeira reação:

- Roubaram minha carteira!

Quase que fiz B.O. e suspendi pagamentos dos cartões nos bancos, mas me chamei à responsabilidade e fui mais racional. A bolsa estava fechada, como roubaram minha carteira? Menos, Consa! Menos...

Estabeleci a trajetória. Onde tomei café, onde comprei as lembrancinhas, onde comprei revistas. E voltei em cada lugar. Havia esquecido a carteira na livraria do terminal. E assim a recebi de volta. Sorte, hein! Sim, mas também precisamos de sangue frio.

Nessa hora que descobre a falta das coisas é uma oportunidade de conhecer as pessoas. Estávamos lá no comitê eleitoral. Maura gritou:

- Cadê a chave de meu carro? Deixei-a sobre a mesa, aqui, e fui panfletar.

Ninguém achava a maldita chave.

- E ela é codificada, custa caro! - gritou Maura.

E chorava, e xingava. E dizia que tinha inimigos no comitê, alguém roubara a chave por vingança, por raiva. Maura pensou o pior, não é uma pessoa de bom coração.

Vendo aquilo, perguntei onde haviam procurado. Só não vasculharam uma caixa grande de papelão com invólucros de pacotes de panfletos. Os mesmos tipos de papelão que havia na mesa de onde sumira a chave.

Pensei: “Está lá, alguém limpou a mesa e a chave foi junto com os invólucros”. E dei uma de louco. Estendi meus braços como se eu fosse um mágico, um profeta, um adivinho:

- Os astros estão me dizendo que a chave está naquela caixa!

Alguém já gritou:

- Sai, véi, resolveu assumir a sua loucura de vez?  

Não dei ouvido à provocação. Fui até a caixa, balancei-a e gritei:

- Ouvi o barulhinho do chaveiro!

Ouvi nada. Carro moderno tem uma chave só. Como ia ouvir o tilintar das chaves? Mas continuei a minha encenação:

- Maura, venha cá, retire o lixo da caixa!

E ela não tirou tudo. Não quis meter a mão no lixo miúdo do fundo da caixa. Mulher de pouca fé.

Fui até a caixa, meti a mão no fundo dela e trouxe a chave, para alegria geral da galera.

Mas a Maura, cabeçuda, continuou achando que um de seus inimigos havia jogado a chave na caixa. Ainda bem que eu não estava no local na hora do sumiço da chave. Há gente assim que desconfia da própria sombra, e assim vai vivendo mal, criando inimizades.


*Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Membro da Academia Araçatubense de Letras.

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