AGENDA CULTURAL

4.4.19

Alma ilhada ou... Interferências de radiofrequência

Gijón - Astúrias
Fernanda Machado*

Passeava pelas ruas de Gijón, em Astúrias, apreciando a beleza natural, arquitetônica e principalmente, nos modos de algumas pessoas. Pais brincando com seus filhos, casais de todos os tipos, grupo de garotas em despedida de solteiro, corredores, surfistas, senhores e senhoras. Tudo era harmonioso e transmitia paz. Estava ao lado de duas brasileiras, falando sobre coisas e de um modo típico da nossa cultura. Caminhávamos pelo calçadão da praia de San Lorenzo.

Fiquei tentando imaginar o que os europeus conversavam, conforme passeavam naquele esplendoroso dia de sol. Seriam coisas semelhantes às nossas? Não falávamos sobre as nossas vidas, nem de algum projeto que poderia nos beneficiar, de filosofias ou visão de futuro. Era isso que aquela paisagem me inspirava, mas não era nada dessas coisas que falávamos. 

Então, me peguei pensando no porquê havíamos passado quase 2 meses ali, sem ter feito amizade com um europeu. Notei que minha colega brasileira que estava na Espanha há mais de uma década não tinha laço com ninguém nativo dali. Sua vida era rodeada de brasileiros, tão somente. Não conseguiria detalhar sobre o que falávamos, mas três palavras resumem o teor daqueles assuntos: fofoca, conflitos e comparações. O que aproxima ou afasta as pessoas não é o espaço físico, mas sim o que cada um cultiva nos corações. 

A minha colega, mesmo há tanto tempo aqui, conseguiu se tornar uma ilha. Ela ainda é a sombra, o reflexo, das grades da cultura de onde ela veio. Por essas grades, nem os habitantes de uma das cidades mais belas do mundo, que estão ali a poucos metros, podem passar. Tampouco a beleza ou o sol radiante conseguem iluminar aquela escuridão. 

Na verdade, em essência, a humanidade é uma só. Aquilo que nos assola, que nos abate, nos contagia, nos deixa em êxtase, pode ser comum. Mas alguns já estão submersos demais pra deixar entrar, pra poder sentir que as grades não os define, mas sim o que está muito além delas.

Quanto a mim, a luta é de sempre duvidar de que aquelas celas me definem e de que posso transitar no mundo sem elas, de cultivar relacionamentos com os pessoas de diversas culturas e lugares, e falar das coisas que podem nos unir, pois qualquer melhora incremental no consciente coletivo produz mudanças extraordinárias na sociedade. 



Continuávamos caminhando e falando, meus pensamentos às vezes se distanciando feito o barco à vela no horizonte. Decidimos nos sentar em um bar à beira da praia pra tomar uma sidra e comer uma porção de calamares. Observei o modo brusco com que a amiga brasileira abordou o garçom e como  utilizou a língua para perguntar sobre o cardápio. Era uma mistura de palavras em espanhol com o português. Ela se esforçava por parecer fluente na entonação, mas a estrutura era misturada. Era como se não conseguisse transitar entre as culturas, sem se definir pela sua. O português ia e vinha, como ondas de interferência de radiofrequência. 

O significado de saber, de fato, outra língua não é apenas para utilizá-la em qualquer sentido prático ou objetivo, mas principalmente, para criar as conexões cerebrais que farão a pessoa um ser humano além do seu próprio quintal. Para isso, é preciso que a alma não esteja ilhada.

*Fernanda Machado é jornalista, mora é de Araçatuba-SP, mas mora em Gijón - Astúrias - Espanha

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