AGENDA CULTURAL

15.7.19

Renato Janine Ribeiro e o voto de Tábata Amaral na Reforma da Previdênciaá





Texto do ex-ministro de Educação e professor da USP publicado em sua página no Facebook
Tenho sido simpático à deputada Tábata Amaral, várias vezes, aqui no Facebook e fora dele. Contudo, seu artigo de hoje na Folha, “A ousadia de ir além das amarras ideológicas” – me parece conter vários equívocos. Primeiro, ela constrói uma oposição entre uma estrutura velha, que “já não representa[...] de fato a sociedade, mas somente alguns de seus nichos”, e um grupo pequeno, que seria antes de mais nada composto por ela mesma e o terço de deputados que, no PDT e PSB, votaram em favor da reforma da Previdência. 

Como diferencial entre o moderno e o arcaico, a reforma da Previdência, mesmo depois que o relator tirou os bodes da sala, esse é um mau exemplo. Haveria muitos outros pontos melhores para atualizar as inteligências, os projetos, do que este. Por isso, tomar o caso da Previdência “como de fato a única tentativa da centro-esquerda de se renovar”, à qual “os partidos estão virando as costas”, é pouco. Melhor seria renová-los a partir do debate sobre o conjunto das políticas sociais, com as quais, de fato, Tábata se preocupa. 

Segundo, dizer-se livre das ideologias e acusar os outros de ideólogos é uma visão bastante errada do que é ideologia. Sejamos claros: toda vez que há oposição de valores, há oposição de ideologias. E a política, a melhor política, se dá justamente quando o que se opõe são valores, portanto, ideologias! Digo há vinte anos: é péssimo escolher entre candidatos porque um seria ladrão e outro, honesto, ou porque um seria competente e outro, não. Ser honesto e ser competente é mera obrigação. Mas haverá honestos e competentes que defendem valores, isto é, ideologias diferentes. 

Basicamente, nas democracias, se opõem uma ideologia liberal e uma social ou socialista. Socialismo não quer mais dizer abolição da propriedade privada dos meios de produção (que era a vertente marxista e depois comunista do projeto socialista), mas uma preocupação intensa com os valores da cooperação e da igualdade. Tábata, que passou anos gastando quatro horas por dia de condução entre a Vila Missionária e o colégio Etapa, deve saber bem dessa importância. Pois se trata de um valor, de uma ideologia.

Liberalismo, fora do Brasil, quer dizer igualdade de oportunidades. É a igualdade no ponto de partida (o socalista preza mais a igualdade no ponto de chegada). O ambiente start-up, a visão empresarial moderna de Lehmann estão neste universo. É uma ideologia legítima e positiva, isto é, desde que se distinga claramente do pseudo-liberalismo dominante no Brasil, que chama de meritocracia a transmissão hereditária do poder e do dinheiro, bem como a substituição do poder do Estado democraticamente eleito pelo das Igrejas, do preconceito e da riqueza. Penso que Tabata está na vertente mais moderna, mais democrática do liberalismo, a muitas léguas da caricatura que denunciei. 

Mas isso não justifica, conceitualmente, reservar o nome de ideologia a quem discorda dela, ou melhor, da sua. 

Terceiro ponto: dizer que ela e seus próximos querem dialogar com a sociedade, mas a “extrema-esquerda” não o quer, é mais um equívoco. Começando, o que é extrema-esquerda no Brasil? O PCO? Certamente não é o PSOL e, menos ainda, o PT ou Ciro Gomes. 

Tenho sempre exposto minhas críticas à dificuldade dos internautas petistas em lidar com o mundo que está aí, e até posso concordar com ela que lhes falta alguma percepção, mas só em parte. Porque não existe “a sociedade” com a qual só um pequeno grupo – os dissidentes, como Tábata, do PDT e PSB – dialogaria. 

A sociedade é pulverizada e, como já disseram multidões antes de mim, no Brasil padece de uma falta grande de organicidade. Em meu livro “A sociedade contra o social”, incluí um artigo que já lá vai pelos seus trinta anos, e no qual comento como “a sociedade”, no Brasil, é um termo apropriado sobretudo pelos mais abonados. (Para os pobres, deixava-se, como migalha, como esmola, “o social”: assistência, serviço, política social, entendidas como pouco mais do que cestas básicas nas horas de seca ou de tempestade – no Brasil, os pobres foram jogados lá onde há água demais ou de menos). 

Desde então, melhoraram as coisas, um tanto com FHC, Vilmar Farias e Ruth Cardoso, um muito com Lula e Dilma, mas sempre graças a políticas sociais que, agora, estão sendo destruídas.
Finalmente: a análise de que hoje as questões principais dizem respeito ao confronto do “funcionamento dos partidos políticos no presidencialismo e o processo de renovação da política brasileira”, ou à existência de “presidencialismo, multipartidarismo e federação”, me parece um último equívoco.

Seria melhor dizer que o tão atacado presidencialismo de coalizão combina duas exigências fortíssimas da população brasileira: eleger pelo voto direto um presidente poderoso, que foi escolhido com mais convicção do que se dá à maior parte dos deputados (sendo que Tabata aqui é uma exceção, porque o voto nela foi convicto, bem mais do que naqueles cujos nomes o eleitor esquece no dia seguinte), e ao mesmo tempo assegurar a representação proporcional de todos os partidos. 

Essas duas exigências quase antagônicas exigem do presidente um esforço danado para formar maiorias. 

Não por acaso, dos presidentes eleitos desde 1989 metade conseguiu compor maiorias, porque eram praticamente super-homens, FHC e Lula, e metade não conseguiu e foi afastada por impeachment. 

Como neste ponto Tábata foi muito rápida, não dá para entender bem o que ela quer, a não ser o evidente, isto é, que os partidos escutem mais o povo. 

Mas isso não quer dizer que o povo vá apoiá-la. Basta ver os comentários ao artigo dela que menciono: maioria significativa contra ela; ou os comentários a seus últimos posts em sua página: maioria esmagadora de críticas. 

Não quero, com isso, demolir sua imagem, que continuo respeitando. Mas penso que ela errou ao sair da sua praia, que é a melhora da educação, assunto sobre o qual conhece muitos dados e tem evidências, e entrar num assunto espinhoso e, desculpem-me, que ela conhece menos e no qual sua posição foi, aqui me permito dizer, mais baseada em ideologias do que em pesquisas.
Terminando: pretendo que esta crítica seja uma contribuição ao debate público da política brasileira. 

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