Hélio Consolaro é professor, jornalista e escritor. Araçatuba-SP
A literatura sempre nos surpreende, aliás, a arte em geral, por isso quem é muito previsível não gosta de arte e artistas.
Estou lendo devagar, saboreando as palavras e as ideias de Graciliano em textos esparsos, achados aqui e ali por Thiago Mio Salla, USP, organizados no volume "Garranchos", Editora Record, quando deparo com uma crônica escrita em 1930 no Jornal de Alagoas, ou seja, há 90 anos, com o título "O Álcool"
Pensei: "Qual era a cachaça preferida do querido escritor?" Que nada! Ele escreveu sobre etanol, o álcool combustível, em Alagoas, quando o carro corria no máximo de 30 km/h, discutindo problemas de hoje.
Enquanto no Sul do país, Monteiro Lobato gritava "O petróleo é nosso"; no Nordeste, Graciliano Ramos respondia que "O álcool é que é nosso!"
Enquanto no Sul do país, Monteiro Lobato gritava "O petróleo é nosso"; no Nordeste, Graciliano Ramos respondia que "O álcool é que é nosso!"
Resolvi presentear o leitor com tal crônica. Boa leitura. A crônica está nas páginas 106-108. Eis abaixo:
O ÁLCOOL - Graciliano Ramos
Noticiou esta folha que o Sr. governador do Estado e o
Sr. secretário da Fazenda,2 em viagem realizada a 14 deste mês,
demonstraram ser o álcool excelente para motores de automóveis. O artigo que
nos oferece a interessante novidade encerra informações preciosas a respeito de
força, velocidade, preço etc.; tem grande número de algarismos; soma, diminui,
multiplica, divide — mete num chinelo a gasolina ou, pelo menos, coloca-a na
modesta situação de contribuir apenas com 15% na mistura que há de pôr em
movimento, dentro em pouco, os veículos de Alagoas. Teremos, pois, se a minha
aritmética não falha, uma redução de 85% no consumo do combustível gringo.
Há alguns dias, no
Senado, o Sr. Messias de Gusmão3 declamou lamentações patrióticas e
atacou, em falta de coisa maior, uma bomba americana, pintada de vermelho, aqui
instalada para substituir outra mais antiga, pintada de branco e nacional. As
jeremiadas do ilustre senador indignaram toda a gente, e podemos prever o fim
dessas máquinas exóticas, que nos impingem líquidos nauseabundos da América do
Norte, trapalhona e protestante.
Ora vejam como um
simples adjetivo alarga o assunto e rende períodos novos. Está claro que os
brasileiros, especialmente os católicos, devem elevar aos cornos da lua o
produto da cana, ortodoxo e econômico. Resistam, cristãos e amigos,
mandem à fava o dólar, empreguem nas suas viaturas (os que as possuírem,
naturalmente) substâncias nossas.
Parece
que em Pernambuco a rusga triunfa. E o deputado Castro Azevedo4 afirmou
ao Jornal de Alagoas que há seis meses vem alimentando com álcool um carro de
passeio e vários caminhões, cujos motores funcionam de maneira exemplar.
Não
admira. Conheço indivíduos que passam seis anos sem ingerir outro alimento e têm os motores em perfeito estado. Se
utilizassem a gasolina, sentiriam talvez algumas perturbações.
Ninguém
ignora que o álcool é um excitante aconselhado às vezes pela medicina, em
pequenas doses. Para a espécie humana, já se vê. Com organismos de ferro o caso
é diferente.
A
experiência mencionada no princípio destas linhas evidenciou que um automóvel
absorve quarenta litros de álcool e anda cento e trinta quilômetros sem se
embriagar. E assombroso. Com a intemperança natural nos maquinismos, bebe
sempre, e só de longe em longe necessita algum repouso e amoníaco. Finda a
carraspana, continua a rodar como se nada houvesse acontecido.
Julgo,
pelo que aí fica, terem carradas de razão o Sr. Álvaro Paes e os seus
secretários, o Jornal de Alagoas, o deputado Castro Azevedo, o senador Messias
de Gusmão e Pernambuco.
Só
faz medo que as latas de folha vençam as garrafas e prejudiquem a respeitável
classe dos paus-d'água.5
Notas
1.
G.R.
[Graciliano Ramos]. "O álcool". Jornal de Alagoas, Maceió, 21 de
junho de 1930. As iniciais C.R., com que Graciliano assina o presente texto, já
haviam sido utilizadas na crônica "Alvaro Paes", publicada no mesmo
Jornal de Alagoas em 12 de junho de 1930 e posteriormente recolhida no volume
póstumo Linhas tortas.
2.
Menção
a Álvaro Corrêa Paes, governador de Alagoas de junho de 1928 a outubro de 1930,
e ao secretário da Fazenda deste, Arthur Accioly, que, no momento, também
ocupava o posto de diretor do Jornal de Alagoas.
3 Referência a Manoel Messias
de Gusmão, produtor rural, jornalista, deputado
estadual de 1915 a 1922 e senador estadual de 1923 a 1930 (num momento em que o
poder legislativo no estado de Alagoas era bicameral) (BARROS, Francisco
Reinaldo Amorim de. ABC das Alagoas — dicionário biobibliográfico, histórico e
geográfico das Alagoas. 2 vols. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial,
2005, vol. 2, pp. 50 e 554-5).
4
Provável
alusão a José de Castro Azevedo, secretário de Estado, jornalista, usineiro e
deputado federal de maio a outubro de 1930, quando o processo revolucionário
determinou o fechamento do Legislativo (BARROS, Francisco Reinaldo Amorim de,
op.cit. vol. 1, p. 112).
5
No
dia seguinte à publicação do presente texto por Graciliano, a iniciativa do
chefe do poder executivo estadual continuava a ganhar repercussão no Jornal de
Alagoas: "Os extraordinários resultados das experiências feitas
pessoalmente pelo governador Álvaro Paes, relativas à aplicação do
álcool-motor, não devem ser apreciadas somente sob o aspecto financeiro,
suficiente, aliás, para afirmar, em definitivo, a superioridade desse
combustível e recomendá-lo incontinente ao comércio e à indústria"
(CARVALHO, Afonso. "O álcool-motor". Jornal de Alagoas, Maceió, 22 de
junho de 1930, p. 3). O articulista argumenta que o álcool seria solução para o
grande consumo de gasolina, bem como serviria para aumentar as lavouras de
cana.
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