AGENDA CULTURAL

29.7.14

Sarau: o Sol não compareceu

Ambiente com a presença da Orquestra Municipal de Sopros Bruno Zago, Araçatuba
Sarau ao pôr do sol. Todo sarau, nos tempos idos, era feito à luz de vela. Sarau é uma atividade dedicada à Lua. Noturna. Mas o rei reclamou e Gylce Maria abriu exceção, para que o reclamão parasse de resmungar. Como o Sol é uma estrela geniosa, mal-agradecida, não compareceu. Tal ausência foi comemorada porque a vida terrestre estava com sede de chuva. 
Gylce Maria lendo texto
No dia 27 de julho de 2014, 16h, na Quinta do Sardão, na zona rural de Guararapes (rodovia Marechal Rondon, quase divisa com Araçatuba) houve o sarau ao pôr do sol, à beira do lago, mas os artistas preferiram área coberta. A Orquestra Municipal de Sopros Bruno Zago, de Araçatuba, encantou a todos.
Alunos de escolas de Guararapes participaram da festa literomusical 
Dessa vez, houve mais escritores, com estudantes, com orquestra. Estiveram presentes até vereadores guararapenses. A festa foi bem preparada. José Hamilton Brito, Ana Lúcia Pazzuti, Marianice Paupitz, Anísio Canola, Marilurdes Campezi, Larisssa Alves e este blogueiro, Hélio Consolaro. A cantora Sueli Rodrigues em vez de cantar, declamou um poema deprê: "Eu tenho vergonha de mim".

A bailarina Luciana Arruda, Guararapes, declamou um texto do escritor norte-americano Jack Kerouac, "Na estrada":


Jack Kerouac
Aqui estão os loucos. Os desajustados. Os rebeldes. Os criadores de caso. Os pinos redondos nos buracos quadrados. Aqueles que vêem as coisas de forma diferente. Eles não curtem regras. E não respeitam o status quo. Você pode citá-los, discordar deles, glorificá-los ou caluniá-los. Mas a única coisa que você não pode fazer é ignorá-los. Porque eles mudam as coisas. Empurram a raça humana para a frente. E, enquanto alguns os vêem como loucos, nós os vemos como geniais. Porque as pessoas loucas o bastante para acreditar que podem mudar o mundo, são as que o mudam.

Esse texto dialogou com o lido por mim: Cântico Negro, de José Régio. 


Hélio Consolaro lendo o seu poema, usando o iPhone



Cântico negro
José Régio
José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.
Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

José Régio
pseudônimo literário de José Maria dos Reis Pereira, nasceu em Vila do Conde em 1901. Licenciado em Letras em Coimbra, ensinou durante mais de 30 anos no Liceu de Portalegre. Foi um dos fundadores da revista "Presença", e o seu principal animador. Romancista, dramaturgo, ensaísta e crítico, foi, no entanto, como poeta. que primeiramente se impôs e a mais larga audiência depois atingiu. Com o livro de estréia — "Poemas de Deus e do Diabo" (1925) — apresentou quase todo o elenco dos temas que viria a desenvolver nas obras posteriores: os conflitos entre Deus e o Homem, o espírito e a carne, o indivíduo e a sociedade, a consciência da frustração de todo o amor humano, o orgulhoso recurso à solidão, a problemática da sinceridade e do logro perante os outros e perante a si mesmos.

Assim, passamos uma tarde diferente, sem ficar agarrados à televisão, assistindo a Corinthians e Palmeiras.


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